UMA LEITURA DE WOLFGANG ISER
OS ATOS DE FINGIR OU O QUE É FICTÍCIO NO TEXTO FICCIONAL
Aídes José Gremião Neto.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes: vol. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, pp. 384-416).
Os trabalhos de Wolfgang Iser acerca das relações do fictício no texto ficcional nos propiciam diversas reflexões.A primeira delas, verificamos assim que Iser (1983) inicia sua abordagem, partindo da opinião coletivamente aceita de que os textos literários são apenas de natureza ficcional para revelar que esta classificação valida a ideia advinda de nosso “saber tácito”. Este “saber tácito” equivale ao nosso conhecimento elementar – que opõe ficção e realidade de maneira objetiva. Para o autor, este “saber tácito” desconsidera o real existente no fictício e aborta as relações intra e extratextuais existentes nos textos literários.
Em seguida, Iser nos direciona à ideia de que o real e o fictício ultrapassam os limites desse “saber tácito”, reforçando a crença de que o real está presente no fictício – porém, sem nele se esgotar. Assim se posicionando, o crítico propõe uma tríade: real, fictício e imaginário que, juntos e em relação mútua, formam a base do texto ficcional.
Segundo Iser, há uma espécie de transgressão de limites, tanto no processo de elaboração do texto ficcional quanto no processo de concretização deste: o ato da leitura. Ambos os procedimentos formulam e reformulam mundos, permitindo que os acontecimentos encenados sejam experimentados pelo receptor.
No que se refere ao processo de elaboração, podemos notar dois aspectos de singular importância: a seleção e a combinação dos elementos estruturantes da ficção. A seleção consiste na retirada desses elementos do mundo vivido para sua introdução na realidade ficcional; já a combinação fundamenta-se no ordenamento que o autor faz desses citados elementos no universo da ficção.
Na primeira, ao recortar os componentes do real extratextual, o autor do texto ficcional não dá conta de sua totalidade – pois os campos de referência estão delimitados –, sendo constantemente forçado a excluir algo. Por sua vez, o que fica isento da ficção, Iser o chama de “parêntese”, que é justamente aquilo que o receptor converterá em objetos de percepção. O leitor buscará descortinar aquilo que foi omitido a fim de decodificar o mundo intratextual e, consequentemente, realizar de um ‘novo’ real.
Daí advem o que Iser nomeia de “transgressão de limites”, pois, ao passo em que introduz os componentes extratextuais em um “novo mundo”, o autor finge uma nova realidade – a ficção. E para tanto, o autor de ficção necessita combinar estes elementos de maneira coerente, visando à formulação de um mundo que, nem sendo o vivido, tampouco é detentor de significado por si só. Este mundo é, sim, novo, a ser redefinido no contato com o leitor.
Em outras palavras, há uma desconstrução e reconstrução da realidade na produção do texto literário, realidade essa a ser novamente irrealizada e reconstituída no acontecimento da ficção. Por conseguinte, este acontecimento se dá somente pelo processo de leitura, em que cada imaginário será responsável por reorganizar a realidade de acordo com as conveniências impostas por suas experiências de vida.
Iser argumenta que a recepção da ficção encontra-se muito próxima das experiências do imaginário, pois são eles os responsáveis pela tarefa interpretativa. Portanto, podemos inferir que a interpretação, de certa forma, apenas auxilia na delimitação dos campos de dedução do imaginário. Ainda segundo o crítico, a interpretação pode apenas semantizar o imaginário.
Vemos que a transgressão de limites estabelecida entre texto e contexto está associada tanto à seleção quanto à combinação dos componentes extratextuais a serem dispostos na obra literária. Isto, como revela Iser, só é possível graças ao “como se”, que permite com que os atos de fingir validem os textos como ficcionais, ao passo em que estes estabelecem convenções diretamente reconhecíveis pelo autor e leitor.
Como nos aponta Iser, segundo Jeremy Bentham, “a ficção encontra sua ‘existência impossível’ apenas na língua”, o que nos remete ao fato de que, ao serem transgredidos, os componentes apresentados na ficção como meros significantes são reforçados por aqueles que se ausentaram, o “parêntese”. Assim, ocorre uma perda das articulações originais e uma reincorporação a uma nova articulação – ocasionada pela elevação do leque de possibilidades da reiteração do que antes era irrealizável.
Por sua vez, o receptor é aguçado por essa “existência impossível” da ficção, melhor, pela parcialidade do real a ser reconhecido, sendo levado por sua própria curiosidade a identificar a ficção como possibilidades de um real.
É fundamental ressaltarmos o que Iser pontua a respeito da intencionalidade do texto. Conforme nos indica o autor, a intencionalidade estaria atrelada ao processo de seleção e combinação, pois o ato de fingir fundamentado no “como se” assinala os campos de referência com o fim de serem transgredidos.
Desta forma, a intencionalidade se revela como figura de transição entre o real e o imaginário, com o estatuto de atualidade. Esta atualidade, por sua vez, consiste no momento em que se estabelece o contato entre texto e destinatário, quer dizer, ela se refere ao processo pelo qual o imaginário interage com o espaço real extra e intratextual.
A dimensão entendida como experiência pode ser decifrável, pois autor e leitor podem partilhar do mesmo código ideológico em que opera a linguagem obrigatoriamente figurativa da ficção. Entretanto, esta dimensão não pode ser concretamente determinável por si própria, pois a linguagem figurada é semanticamente inexaurível. Logo, é inevitável que haja um processo de tradução desses códigos interpretativos por parte do receptor. Isto o proporcionará assimilar novos conhecimentos de mundo, que mais uma vez acarretarão numa transfiguração de sua própria experiência. Isto implica um procedimento infindável de reflexão sobre reflexão, imposto pela referida linguagem figurativa do texto literário.
Tal procedimento nos auxilia a compreender que o fictício não pode ser o sentido do texto, por justamente estar num texto – neste caso, o ficcional – é nunca chegar a um sentido (pré) determinado. Por isso, ratifica-se que o sentido do texto encontra-se na tradução do imaginário, o qual, segundo Iser, nunca será lido da mesma forma por todos e este imaginário constitui a força realizante do texto de ficção.
Todos esses recursos apontados por Iser são bem modelados em seu estudo sobre o universo ficcional, que, além de superar a concepção dicotômica entre imitação e real como forma de elaboração de um saber acerca do mundo da ficção, desenvolve um pensamento capaz de abarcar outras formas de compreensão da realização dos mundos produzidos ficcionalmente – como os ditos “impossíveis” na realidade vivida.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes: vol. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, pp. 384-416).
Os trabalhos de Wolfgang Iser acerca das relações do fictício no texto ficcional nos propiciam diversas reflexões.A primeira delas, verificamos assim que Iser (1983) inicia sua abordagem, partindo da opinião coletivamente aceita de que os textos literários são apenas de natureza ficcional para revelar que esta classificação valida a ideia advinda de nosso “saber tácito”. Este “saber tácito” equivale ao nosso conhecimento elementar – que opõe ficção e realidade de maneira objetiva. Para o autor, este “saber tácito” desconsidera o real existente no fictício e aborta as relações intra e extratextuais existentes nos textos literários.
Em seguida, Iser nos direciona à ideia de que o real e o fictício ultrapassam os limites desse “saber tácito”, reforçando a crença de que o real está presente no fictício – porém, sem nele se esgotar. Assim se posicionando, o crítico propõe uma tríade: real, fictício e imaginário que, juntos e em relação mútua, formam a base do texto ficcional.
Segundo Iser, há uma espécie de transgressão de limites, tanto no processo de elaboração do texto ficcional quanto no processo de concretização deste: o ato da leitura. Ambos os procedimentos formulam e reformulam mundos, permitindo que os acontecimentos encenados sejam experimentados pelo receptor.
No que se refere ao processo de elaboração, podemos notar dois aspectos de singular importância: a seleção e a combinação dos elementos estruturantes da ficção. A seleção consiste na retirada desses elementos do mundo vivido para sua introdução na realidade ficcional; já a combinação fundamenta-se no ordenamento que o autor faz desses citados elementos no universo da ficção.
Na primeira, ao recortar os componentes do real extratextual, o autor do texto ficcional não dá conta de sua totalidade – pois os campos de referência estão delimitados –, sendo constantemente forçado a excluir algo. Por sua vez, o que fica isento da ficção, Iser o chama de “parêntese”, que é justamente aquilo que o receptor converterá em objetos de percepção. O leitor buscará descortinar aquilo que foi omitido a fim de decodificar o mundo intratextual e, consequentemente, realizar de um ‘novo’ real.
Daí advem o que Iser nomeia de “transgressão de limites”, pois, ao passo em que introduz os componentes extratextuais em um “novo mundo”, o autor finge uma nova realidade – a ficção. E para tanto, o autor de ficção necessita combinar estes elementos de maneira coerente, visando à formulação de um mundo que, nem sendo o vivido, tampouco é detentor de significado por si só. Este mundo é, sim, novo, a ser redefinido no contato com o leitor.
Em outras palavras, há uma desconstrução e reconstrução da realidade na produção do texto literário, realidade essa a ser novamente irrealizada e reconstituída no acontecimento da ficção. Por conseguinte, este acontecimento se dá somente pelo processo de leitura, em que cada imaginário será responsável por reorganizar a realidade de acordo com as conveniências impostas por suas experiências de vida.
Iser argumenta que a recepção da ficção encontra-se muito próxima das experiências do imaginário, pois são eles os responsáveis pela tarefa interpretativa. Portanto, podemos inferir que a interpretação, de certa forma, apenas auxilia na delimitação dos campos de dedução do imaginário. Ainda segundo o crítico, a interpretação pode apenas semantizar o imaginário.
Vemos que a transgressão de limites estabelecida entre texto e contexto está associada tanto à seleção quanto à combinação dos componentes extratextuais a serem dispostos na obra literária. Isto, como revela Iser, só é possível graças ao “como se”, que permite com que os atos de fingir validem os textos como ficcionais, ao passo em que estes estabelecem convenções diretamente reconhecíveis pelo autor e leitor.
Como nos aponta Iser, segundo Jeremy Bentham, “a ficção encontra sua ‘existência impossível’ apenas na língua”, o que nos remete ao fato de que, ao serem transgredidos, os componentes apresentados na ficção como meros significantes são reforçados por aqueles que se ausentaram, o “parêntese”. Assim, ocorre uma perda das articulações originais e uma reincorporação a uma nova articulação – ocasionada pela elevação do leque de possibilidades da reiteração do que antes era irrealizável.
Por sua vez, o receptor é aguçado por essa “existência impossível” da ficção, melhor, pela parcialidade do real a ser reconhecido, sendo levado por sua própria curiosidade a identificar a ficção como possibilidades de um real.
É fundamental ressaltarmos o que Iser pontua a respeito da intencionalidade do texto. Conforme nos indica o autor, a intencionalidade estaria atrelada ao processo de seleção e combinação, pois o ato de fingir fundamentado no “como se” assinala os campos de referência com o fim de serem transgredidos.
Desta forma, a intencionalidade se revela como figura de transição entre o real e o imaginário, com o estatuto de atualidade. Esta atualidade, por sua vez, consiste no momento em que se estabelece o contato entre texto e destinatário, quer dizer, ela se refere ao processo pelo qual o imaginário interage com o espaço real extra e intratextual.
A dimensão entendida como experiência pode ser decifrável, pois autor e leitor podem partilhar do mesmo código ideológico em que opera a linguagem obrigatoriamente figurativa da ficção. Entretanto, esta dimensão não pode ser concretamente determinável por si própria, pois a linguagem figurada é semanticamente inexaurível. Logo, é inevitável que haja um processo de tradução desses códigos interpretativos por parte do receptor. Isto o proporcionará assimilar novos conhecimentos de mundo, que mais uma vez acarretarão numa transfiguração de sua própria experiência. Isto implica um procedimento infindável de reflexão sobre reflexão, imposto pela referida linguagem figurativa do texto literário.
Tal procedimento nos auxilia a compreender que o fictício não pode ser o sentido do texto, por justamente estar num texto – neste caso, o ficcional – é nunca chegar a um sentido (pré) determinado. Por isso, ratifica-se que o sentido do texto encontra-se na tradução do imaginário, o qual, segundo Iser, nunca será lido da mesma forma por todos e este imaginário constitui a força realizante do texto de ficção.
Todos esses recursos apontados por Iser são bem modelados em seu estudo sobre o universo ficcional, que, além de superar a concepção dicotômica entre imitação e real como forma de elaboração de um saber acerca do mundo da ficção, desenvolve um pensamento capaz de abarcar outras formas de compreensão da realização dos mundos produzidos ficcionalmente – como os ditos “impossíveis” na realidade vivida.