Onze: uma estreia
Paulo César Oliveira.
CARVALHO, Bernardo. Onze: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Lançado em 1995, Onze: uma história é a estreia de Bernardo Carvalho no romance. Uma estreia promissora, disseram alguns críticos, à época. Relido hoje, vemos que o romance já nos apresentava e/ou antecipava alguns elementos recorrentes na obra do autor. Um breve panorama desta narrativa é importante para situarmos essa narrativa inaugural no conjunto dos romances de Carvalho.
Em um sítio no interior do Rio de Janeiro, encontramos um grupo de pessoas cujos destinos estão conectados a outras, de várias partes do mundo, em uma espécie de jogo de duplos multiplicados. Nesse jogo, os acasos, as histórias mirabolantes e, por vezes, inverossímeis, o constante deslocamento geográfico, o sentido do não-pertencimento, tudo está a serviço de uma obra ficcional que se desdobrará, assim como ocorrerá nas produções futuras de Carvalho, em uma poética de autor das mais instigantes.
O romance é dividido em três partes, além de um apêndice, intitulado “Duas guerras”. Na primeira parte, alguns personagens em um sítio brincam do “jogo do morto”. Cada personagem desse grupo de amigos, parentes e conhecidos possui uma relação, estreita ou distante com o outro. A questão do jogo, que abre o romance, é indispensável para que compreendamos os elementos da poética de Carvalho. A certa altura, na página 14, lemos que “é um jogo onde não se deve confiar em ninguém, pois nunca se sabe quando se vai encontrar um morto e quem ainda está vivo, e se não se desconfia, morre-se também, muito rápido, sobrevém a morte súbita, sem sobreaviso mas com tempo suficiente para o sobressalto, para que se reconheça o erro, o equívoco de não ter reconhecido um morto, de ter tomado o que já estava morto por vivo, era esse o jogo, esperar e se surpreender, mas já ir morrendo de excitação durante a espera (...)”. A longa citação é necessária se entendermos seu alcance, na obra, e para as futuras narrativas de Carvalho.
Em Onze, chamaremos a construção narrativa de uma espécie de “poética do jogo”, e que se alinha a uma “poética do gozo”, do gozo da escrita, conforme Roland Barthes já classificara, mas também “poética do destinatário”, ou do leitor que se dispuser a jogar o que chamamos de “jogo do morto ficcional” proposto por Carvalho. Expliquemos melhor.
A narrativa de Onze não possui centros. Não há uma personagem central que a costure, alinhave. No nível da diegese, os constantes deslocamentos temporais, nos dão conta de um tempo presente em que, a todo o momento, real e ficcional se entrelaçam, um descosturando o outro, como no jogo do morto supracitado: na narrativa, o leitor não deve confiar de pronto no que lhe é apresentado, pois, como em todo jogo, trata-se de “uma trapaça salutar com a língua”, para ficarmos novamente com Barthes. O terreno incerto da ficção de Carvalho é o que movimenta os diversos planos narrativos, com suas histórias que, aparentemente, díspares e dispersas revelam uma polifonia de acasos, semelhanças, coincidências, cruzamentos, entrecruzamentos os quais, ao final do romance, vão se resolvendo, quase todos, no espaço indiferenciado do aeroporto – espaço dos não-lugares, como bem expressa Marc Augé, em obra homônima. Chamemos isso de “histeria do doppelgänger”, isto é, multiplicação de duplos que entram de forma aparentemente caótica na narrativa.
Entremeando essas relações, Carvalho problematiza a questão da arte, especialmente nos dois capítulos da segunda parte do romance. No capítulo 1, intitulado OAEOOEOE, lemos no parágrafo de abertura: “Quando acordei, meu pai se chamava Fábio, minha mãe Beatriz, meu nome era Bernardo, e já era tarde” (p. 57). Permanece, como se vê, o jogo de mascaramentos ficcionais, aqui apresentando um narrador cujo nome se confunde com o de seu autor, além da personagem intitulada “o artista”.
O insólito deste capítulo fica por conta da estranha doença de um menino que não consegue ver nos textos as vogais (a, o, e) que dão título ao capítulo. É pela boca desse menino que o capítulo é narrado, e o que se reflete são as relações da arte com real, ou seja: as conexões entre arte e real são mediadas pelo brutalismo do artista, por sugestões de pedofilia, envolvimento com tráfico de órgãos, assassinatos etc. Da mesma forma, o segundo capítulo dialoga com primeiro, reduplicando a problemática entre real e arte: neste momento da trama, um jovem desafia um pintor a provar a validade de sua tese, de que a arte é universal e superior ao real. O artista pintava notas de dinheiro aparentemente idênticas às cédulas verdadeiras, as espalhava pelos locais por onde passava e onde morava por alguns meses. Após avisar as autoridades do feito, as notas causavam rebuliço nos mercados e isso serviria para provar a tese da universalidade da arte. O jovem aluno, disposto a desmontar a tese do pintor e fazer prevalecer a sua, de que a arte não era universal, propõe que o artista faça sua experiência no “país do dinheiro”. A ambígua intenção do jovem estudante seria mostrar que “havia um lugar no mundo onde a obra não podia funcionar, que a obra não era universal, a realidade era de fato mais forte que a arte, um anti-romantismo extremo”; ou, por outro lado, prestar homenagem a Kill, o pintor, ao demonstrar que “é justamente por não poder vencer a realidade que a arte de verdade a desafia, que a beleza desse romantismo está no fracasso”? (p. 86). Obviamente, no país da inflação galopante, o projeto do pintor se mostra um fracasso.
Nesse embate entre as possibilidades de se pensar as relações entre arte e ficcional, Carvalho descostura a trama tradicional, mostrando que é nesse jogo relacional que sua ficção se estabelece, abrindo espaços não preenchidos e não preenchíveis, pois os termos verdade, preenchimento, resposta, não fazem parte daquilo que é inerente ao jogo: o lance.
O lance de dados de sua narrativa faz com que os elementos do real se articulem sem jamais se fechar em uma resposta prévia ou possível. Essa estrutura dinâmica se completa com o texto “Duas guerras”, apêndice que funciona como uma espécie de paratexto, sem sê-lo. Nessa rede textual, o círculo se “fecharia” com a cena final no aeroporto – em que morrem quase todos os personagens que lá se encontravam –, a narrativa recria, repete, refaz o jogo do morto, no qual acaso, inconsciência, erro, imprevisibilidade, risco, são palavras/conceitos indispensáveis para se compreender a estrutura narrativa de Onze, e estabelecem as bases de uma poética de autor.
Essa estratégia será desdobrada nos romances seguintes e obsessivamente perseguida de forma a que possamos dizer, não sem certos cuidados, que Carvalho, desde a estreia, já se projetava, em sua obra, como autor disposto a construir uma ficção provocadora, singular.
CARVALHO, Bernardo. Onze: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Lançado em 1995, Onze: uma história é a estreia de Bernardo Carvalho no romance. Uma estreia promissora, disseram alguns críticos, à época. Relido hoje, vemos que o romance já nos apresentava e/ou antecipava alguns elementos recorrentes na obra do autor. Um breve panorama desta narrativa é importante para situarmos essa narrativa inaugural no conjunto dos romances de Carvalho.
Em um sítio no interior do Rio de Janeiro, encontramos um grupo de pessoas cujos destinos estão conectados a outras, de várias partes do mundo, em uma espécie de jogo de duplos multiplicados. Nesse jogo, os acasos, as histórias mirabolantes e, por vezes, inverossímeis, o constante deslocamento geográfico, o sentido do não-pertencimento, tudo está a serviço de uma obra ficcional que se desdobrará, assim como ocorrerá nas produções futuras de Carvalho, em uma poética de autor das mais instigantes.
O romance é dividido em três partes, além de um apêndice, intitulado “Duas guerras”. Na primeira parte, alguns personagens em um sítio brincam do “jogo do morto”. Cada personagem desse grupo de amigos, parentes e conhecidos possui uma relação, estreita ou distante com o outro. A questão do jogo, que abre o romance, é indispensável para que compreendamos os elementos da poética de Carvalho. A certa altura, na página 14, lemos que “é um jogo onde não se deve confiar em ninguém, pois nunca se sabe quando se vai encontrar um morto e quem ainda está vivo, e se não se desconfia, morre-se também, muito rápido, sobrevém a morte súbita, sem sobreaviso mas com tempo suficiente para o sobressalto, para que se reconheça o erro, o equívoco de não ter reconhecido um morto, de ter tomado o que já estava morto por vivo, era esse o jogo, esperar e se surpreender, mas já ir morrendo de excitação durante a espera (...)”. A longa citação é necessária se entendermos seu alcance, na obra, e para as futuras narrativas de Carvalho.
Em Onze, chamaremos a construção narrativa de uma espécie de “poética do jogo”, e que se alinha a uma “poética do gozo”, do gozo da escrita, conforme Roland Barthes já classificara, mas também “poética do destinatário”, ou do leitor que se dispuser a jogar o que chamamos de “jogo do morto ficcional” proposto por Carvalho. Expliquemos melhor.
A narrativa de Onze não possui centros. Não há uma personagem central que a costure, alinhave. No nível da diegese, os constantes deslocamentos temporais, nos dão conta de um tempo presente em que, a todo o momento, real e ficcional se entrelaçam, um descosturando o outro, como no jogo do morto supracitado: na narrativa, o leitor não deve confiar de pronto no que lhe é apresentado, pois, como em todo jogo, trata-se de “uma trapaça salutar com a língua”, para ficarmos novamente com Barthes. O terreno incerto da ficção de Carvalho é o que movimenta os diversos planos narrativos, com suas histórias que, aparentemente, díspares e dispersas revelam uma polifonia de acasos, semelhanças, coincidências, cruzamentos, entrecruzamentos os quais, ao final do romance, vão se resolvendo, quase todos, no espaço indiferenciado do aeroporto – espaço dos não-lugares, como bem expressa Marc Augé, em obra homônima. Chamemos isso de “histeria do doppelgänger”, isto é, multiplicação de duplos que entram de forma aparentemente caótica na narrativa.
Entremeando essas relações, Carvalho problematiza a questão da arte, especialmente nos dois capítulos da segunda parte do romance. No capítulo 1, intitulado OAEOOEOE, lemos no parágrafo de abertura: “Quando acordei, meu pai se chamava Fábio, minha mãe Beatriz, meu nome era Bernardo, e já era tarde” (p. 57). Permanece, como se vê, o jogo de mascaramentos ficcionais, aqui apresentando um narrador cujo nome se confunde com o de seu autor, além da personagem intitulada “o artista”.
O insólito deste capítulo fica por conta da estranha doença de um menino que não consegue ver nos textos as vogais (a, o, e) que dão título ao capítulo. É pela boca desse menino que o capítulo é narrado, e o que se reflete são as relações da arte com real, ou seja: as conexões entre arte e real são mediadas pelo brutalismo do artista, por sugestões de pedofilia, envolvimento com tráfico de órgãos, assassinatos etc. Da mesma forma, o segundo capítulo dialoga com primeiro, reduplicando a problemática entre real e arte: neste momento da trama, um jovem desafia um pintor a provar a validade de sua tese, de que a arte é universal e superior ao real. O artista pintava notas de dinheiro aparentemente idênticas às cédulas verdadeiras, as espalhava pelos locais por onde passava e onde morava por alguns meses. Após avisar as autoridades do feito, as notas causavam rebuliço nos mercados e isso serviria para provar a tese da universalidade da arte. O jovem aluno, disposto a desmontar a tese do pintor e fazer prevalecer a sua, de que a arte não era universal, propõe que o artista faça sua experiência no “país do dinheiro”. A ambígua intenção do jovem estudante seria mostrar que “havia um lugar no mundo onde a obra não podia funcionar, que a obra não era universal, a realidade era de fato mais forte que a arte, um anti-romantismo extremo”; ou, por outro lado, prestar homenagem a Kill, o pintor, ao demonstrar que “é justamente por não poder vencer a realidade que a arte de verdade a desafia, que a beleza desse romantismo está no fracasso”? (p. 86). Obviamente, no país da inflação galopante, o projeto do pintor se mostra um fracasso.
Nesse embate entre as possibilidades de se pensar as relações entre arte e ficcional, Carvalho descostura a trama tradicional, mostrando que é nesse jogo relacional que sua ficção se estabelece, abrindo espaços não preenchidos e não preenchíveis, pois os termos verdade, preenchimento, resposta, não fazem parte daquilo que é inerente ao jogo: o lance.
O lance de dados de sua narrativa faz com que os elementos do real se articulem sem jamais se fechar em uma resposta prévia ou possível. Essa estrutura dinâmica se completa com o texto “Duas guerras”, apêndice que funciona como uma espécie de paratexto, sem sê-lo. Nessa rede textual, o círculo se “fecharia” com a cena final no aeroporto – em que morrem quase todos os personagens que lá se encontravam –, a narrativa recria, repete, refaz o jogo do morto, no qual acaso, inconsciência, erro, imprevisibilidade, risco, são palavras/conceitos indispensáveis para se compreender a estrutura narrativa de Onze, e estabelecem as bases de uma poética de autor.
Essa estratégia será desdobrada nos romances seguintes e obsessivamente perseguida de forma a que possamos dizer, não sem certos cuidados, que Carvalho, desde a estreia, já se projetava, em sua obra, como autor disposto a construir uma ficção provocadora, singular.