O Vice-Rei de Uidá
Mariana Castro de Alencar
Universidade do Estado do Rio e Janeiro
A obra O vice-rei de Uidá, de Bruce Chatwin, é um romance supostamente histórico e tem como tema a vida do traficante de escravos Francisco Félix de Souza, que na trama recebe o nome de Francisco Manuel da Silva.
A narrativa se inicia in ultima res. A narrativa se abre com uma reunião da Família (dos Da Silva) que tem o intuito de relembrar o antepassado ilustre aos 117 anos de sua morte, com direito a missa, festa com banquete e foto de família. Ao narrar fatos da vida dos descendentes de Francisco Félix, ou Francisco Manuel, como, por exemplo, de sua filha Eugênia, o autor vai aproximando o leitor do personagem principal da obra.
Francisco Manuel teve uma infância pobre e bastante sofrida no sertão do Nordeste do Brasil. Perdeu pai e mãe cedo e chegou a ser entregue pelo padrasto a um padre que o criou por um tempo. Na adolescência se uniu a um grupo de peões e vagueou por sete anos pelo interior do Nordeste. Mais tarde casou-se, teve uma filha, mas largou a família para ir ao litoral com o amigo e patrão Joaquim Coutinho. Desde sua infância, Francisco vinha apresentando um caráter um tanto quanto doentio, quando demonstrava certo gosto pelo grotesco, pelo sanguinário, com um certo prazer em matar animais, em ver seu sofrimento.
Depois de um tempo na Casa de seu patrão, Joaquim Coutinho, Francisco decidiu ir embora e foi para a Bahia. Lá ele começou a trabalhar com um homem que vendia instrumentos para torturar escravos. Nesse período, Francisco gostava de ver os tumbeiros que aportavam no cais trazendo os escravos. Fez amizade com um negreiro cigano que lhe ensinou os truques do comércio de escravos. E ao reencontrar com o amigo Joaquim Coutinho, começou a pensar na possibilidade de se tornar um traficante de escravos.
Pouco tempo depois, se dirigiu ao Forte de São João Batista, em Uidá, único lugar onde o tráfico de escravos ainda não tinha sido proibido pela Inglaterra. Tornou-se figura muito importante e poderosa do lugar e fez amizade com o ministro daomeano do tráfico de escravos. Entregou-se ao tráfico, já que acreditava ser sua vocação abastecer com mão de obra as minas, os engenhos e as fazendas do seu país. Casou-se novamente, com uma moça chamada Jijibu, a filha de um canoeiro, cujo maior sonho era ter um genro branco.
Foi preso pelo rei, depois de suas cartas endereçadas ao seu amigo Joaquim Coutinho terem sido extraviadas pelos funcionários da alfândega. Nessas cartas, confidenciava ao amigo que o rei era um “larápio”, porque não havia pago por certa mercadoria, o que deixou o rei do Daomé bastante ofendido. Surpreendentemente, Francisco Manuel se tornou “amigo” do rei, porém continuou preso. Até que um homem lhe disse que quem poderia salvá-lo daquela situação era Kankpé, o meio irmão do rei. Pouco tempo depois, ele e Kankpé se encontraram e fizeram um pacto de sangue declarando lealdade mútua. Da Silva retornou ao litoral, mais precisamente a um porto de escravos chamado Anecho, a oeste de Uidá, onde pretendia recomeçar a vida. Mesmo temeroso, Francisco Manuel retornou para o Abomé, em um dia festivo, quando o novo rei tomava posse e quando Da Silva foi investido com as insígnias de um chefe daomeano, pelo novo rei, passando a ser o “Dom Francisco”.
Um ano depois ele era aclamado o vice-rei de Uidá e tinha transformado o reino do Daomé na máquina militar mais eficiente de toda a África Ocidental. Ele civilizou Uidá e proibiu o emprego do chicote em suas fazendas. Os seus funcionários o adoravam. Dom Francisco fazia questão de assistir a guerra e nenhum pedido desesperado de mãe o comovia, ele acolhia cada atrocidade com um sorriso. Até que viu, certa vez, crianças sendo mortas e teve piedade delas. O rei não tinha mais limites e a matança era cada vez maior. Nesse período Dom Francisco tentava imaginar modos de salvar os prisioneiros, distraindo os nobres com alguma novidade importada da Europa. Apesar dos presentes de Dom Francisco agradarem o rei, a relação de amizade dos dois ia ficando mais distante.
Seu primeiro filho, Isodoro, fruto do casamento com Jijibu, que tinha viajado, voltou da França com a ideia de montar uma fábrica de Óleo de Dendê. E Dom Francisco apoiou a idéia do filho, pois não podia perder a oportunidade de ganhar dinheiro honestamente com óleo de Dendê. A relação de amor entre Dom Francisco e a França acabou quando um comunicado da companhia de Marselha ordenou que a associação com o negreiro fosse rompida. Desesperado, Dom Francisco voltou-se para os ingleses, pensando que se os ajudasse, eles iriam retribuir o gesto. Depois que o Esquadrão da África Ocidental bloqueou o porto de Uidá, os ministros do rei, culparam Dom Francisco por deixar os ingleses entrarem no país.
Um surto de febre amarela matou dez dos Da Silva e até o Dr. Marcos Brandão Ferraz, o primeiro médico de Uidá, acabou se tornando vítima da doença. Após sua morte, Dona Luciana, sua mulher foi violentamente espancada por pessoas que a chamavam de bruxa. Ela acabou sendo levada para a casa de Dom Francisco e lá foi tratada. Depois de um tempo os dois já viviam como marido e mulher e já não conseguiam viver um sem o outro. Dentre todos os seus filhos, Francisco Manuel se importava apenas com as gêmeas, meninas que prometiam serem moças muito belas. Então ele levou Umbelina e Leocádia para morar com ele e Dona Luciana.
Na tentativa de voltar para o Brasil, Dom Francisco mandou suas filhas para casa de Joaquim Coutinho, com a intenção de encontrá-las quando conseguisse retornar ao país. Porém, tempos depois, ao receber uma carta do comissário Paraíso, entrou em desespero ao descobrir que suas filhas adoradas acabaram sendo transformadas em meretrizes. Com o trágico destino das filhas, a morte de Dona Luciana e sabendo que perdeu tudo, Dom Francisco enlouqueceu. Perambulava pela cidade em molambos, todo sujo e ferido. Até que um dia ele voltou para casa e já muito fraco física e mentalmente, não resistiu e morreu.
A obra O vice-rei de Uidá proporciona uma leitura envolvente. Através de um narrador heterodiegético, a narrativa vai sendo construída por analepses, entrelaçando a história de Francisco Manuel e a de alguns de seus filhos e mulheres. Por intermédio de uma descrição minuciosa de detalhes físicos e psicológicos, o autor nos faz conhecer os personagens (suas personalidades, seus anseios, suas angústias).
Nos trechos em que são descritas as roupas e o comportamento das mulheres na missa e na descrição da organização da foto de família (quase impossível de ser tirada), feita após a celebração religiosa, pode ser encontrada certa comicidade. Mas também se encontra muito a presença do grotesco, principalmente quando são descritas as decorações de crânios feitas pelo rei. Essa definição que se encontra no Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés (1995, p. 267), no qual se observa que o grotesco tem predileção pelo crânio humano, pelo que é macabro e cria a imagem de um mundo visto pela loucura.
Esta obra mostra o traço distintivo de seu autor, Bruce Chatwin, que é escrever híbridas literaturas de viagens, como em suas diversas obras, como Patagônia, por exemplo.
O vice-rei de Uidá é um romance histórico que subverte a própria história e nos leva à reflexão sobre as culturas africanas e sobre um capítulo obscuro da história do tráfico de escravos.
Referências bibliográficas:
CHATWIN, Bruce. O vice-rei de Uidá. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.