Romance O filho da mãe, de bernardo Carvalho.
CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Carla Diaso
Bolsista de Estágio Interno Complementar da UERJ
Júlia Guimarães
Bolsista de Estágio Interno Complementar da UERJ
Nascido em 1960, no Rio de Janeiro, o escritor, tradutor e jornalista Bernardo Carvalho inaugurou seu percurso literário com a coletânia de contos Aberração (1993). Com vinte e dois anos de carreira, teve onze livros ficcionais publicados – todos pela Companhia das Letras – com destaque para Nove noites (2002), com os quais ganhou os prêmios Portugal Telecom de Literatura e Jabuti (ambos de 2003); e Mongólia (2003), premiado pela Associação Paulista de Críticos Arte (APCA) e, novamente, pelo Jabuti, em 2004.
Seu mais recente romance, O filho da mãe (2009), é fruto de um projeto financiado pela Lei Rouanet e contou com a publicação também pela Companhia das Letras. Os autores deveriam viajar a recantos do globo para lá ambientarem suas obras, cujo tema giraria necessariamente em torno de uma história de amor.
Bernardo Carvalho foi enviado a São Petersburgo, na Rússiacom a missão de escrever uma história de amor, de acordo com o projeto Amores Expressos. Durante sua permanência na cidade, Bernardo deu ao seu romance voz a dois outsiders, sendo os personagens principais estrangeiros em sua própria nação e em seu próprio berço familiar, a saber, o russo Andrei e o tchetcheno Ruslan. Sua própria vivêsncia e seus percalços de viagem estão ficcionalizados, em O filho da mãe.
A narrativa contaa luta de mulheres para que seus filhos sobrevivam à guerra. A trama ocorre, principalmente, em São Petersburgo e se desenvolve no período da Segunda Guerra na Tchetchênia: é um drama de gerações, que faz com que seus personagens vivam a experiência da perda, do exílio, do preconceito e da desumanização.
A narrativa registra o encontro de Ruslan e Andrei, traçando um painel com diversas histórias autônomas que acabam se cruzando, revelando sua interrelação ao longo da trama. Isto, por sua vez, tende a surpreender o leitor e a provocá-lo, na qualidade de crítico atento.
Dentre a confluência de histórias, Andrei e Ruslan são dois personagens marcantes e relevantes na construção da narrativa: Ruslan é um refugiado da Tchetchênia que, após as obsessivas negociações de sua avó, Zainap, consegue imigrar para São Petersburgo, em busca de sobrevivência e do reencontro com sua mãe, que o abandonara na infância; já Andrei é um recruta do Cáucaso, filho de um pai brasileiro, que não o vê desde os dez anos de idade, com uma mãe frágil que o deixa à mercê da guerra, por influência do segndo marido.
Quando ordenado pelo Oficial da Reserva para uma missão externa e especial, Andrei conhece Ruslan, por caminhos tortuosos, e acaba se apaixonando pelo desconhecido: “A ideia de uma vulnerabilidade maior que a sua lhe desperta amor” (CARVALHO, 2009, p. 139). Por ter o dinheiro do quartel furtado, Andrei é obrigado a desertar e sair à caça do assaltante que, sabemos, é Ruslan. Empreendendo uma busca desesperada, ele encontra o ladrão e para a sua surpresa vê nele o seu espelho, seu duplo (Doppelgänger). Trata-se, portanto, de duas histórias, duas vidas marcadas pela guerra, pelo preconceito, pela maternidade negada, omissa ou indiferente.
Embora esse encontro seja marcante na narrativa, são os desencontros, que constroem o primeiro plano do romance. Esses descaminhos são personificados pelo caos que se configura pelo cenário de destruição descrito na obra, por conta da Segunda Guerra da Tchetchêmia, contexto histórico dos conflitos vividos pelos personagens centrais.
Em O filho da mãe, encontramos algumas temáticas convergentes, interligadas e orientadas pelo fio condutor da narrativa: a maternidade. O retrato da orfandade e do abandono é a própria imagem das guerras e se perpetua no enredo, mostrando que na ficção de Carvalho (2009, p. 186) “mães têm muito mais a ver com a guerra do que imaginam”.
Nesta narrativa, a maternidade é associada à guerra e a figura materna assemelha-se às próprias ruínas do confronto. A figura materna é também homóloga às ruínas da cidade de São Petersburgo. Identificamos uma espécie de anomia provocada por lutas, grandes perdas e vazio decorrentes das transformações do mundo social moderno. Essa anomia é alegorizada na figura das mães, cujas identidades são atravessadas pelas intensas transformações que ocorrem em São Petersburgo: [...] É a mais artificial de todas as cidades. Em três séculos, tentaram três nomes, em vão. Um nome por século. Construíram trezentas pontes, umapara cada ano, mas nenhuma leva a lugar nenhum. Ninguém nunca vai sair daqui.” (CARVALHO, 2009, p. 22). (Grifos nossos).
Um exemplo dessa desumanização é a história de Zainap, avó de Ruslan, disposta a pagar propinas ou mesmo a morrer pela sobrevivência de seu neto e as duas mulheres que movimentam o início da narrativa. Outro exemplo é o de Marina, cujo filho se suicida por conta da guerra; e Iúlia, que após ser diagnosticada em estado terminal, “sentiu que não podia morrer sem salvar a vida de alguém”. A guerra é o próprio estado de desumanização, que a ideia da morte ratifica. O amor, no entanto, seja das mães ou entre os dois rapazes, se torna a possibilidade do humano, no romance.
Histórias de mães e filhos desamparados que se (re) encontram, formando uma multiplicidade de vozes, relatos e perspectivas, o manejo dialógico do narrador-onisciente sugere identidades esfaceladas pela guerra. Andrei e Ruslan incorporam no romance a problematização de algumas questões latentes na contemporaneidade: o não-pertencimento, a xenofobia e os diversos modos de preconceitos.
Ambos os personagens deslocam-se de suas cidades de origem para se protegerem da guerra civil. Da mesma forma, os estrangeiros, sobretudo os imigrantes do Cáucaso, são tratados como uma espécie de sujeira das obras de São Petesburgo, tendo como exemplo o apelido pejorativo que Maksim usa para designar Ruslan: “bunda-preta”.
Sob a ótica carvaliana, vemos não somente uma nação que se quer moderna e em construção, mas também um lugar de opressão, racismo e exclusão. Essa atmosfera é provocada por um narrador heterodiegético, que nos dá uma dimensão de espaço opressor e de medo: [...] Anna não faz ideia de quem possa ter lhe enviado uma encomenda registrada. É estranho receber um aviso debaixo da porta. Se o tivessem deixado na caixa de correio da portaria, como de hábito, ela nunca o teria pegado. Não recebe cartas. Não abre envelopes. Quem a conhece sabe. É uma espécie de fobia. Há vinte anos, evita receber notícias [...] (CARVALHO,2009, p. 49).
Dentro desse eixo narrativo, notam-se várias associações feitas pelos personagens. Dentre elas, destacamos a fala da avó de Ruslan, que passou a associar a viagem à perda e aos desencontros. Já Ruslan, liga o sexo à trégua, e o amor à iminência da morte. Essas ligações alegorizam a trajetória de cada personagem, suas formas características de lidar com a vida e suas perdas. As relações são, acima de tudo, maneiras de entender o caos em que estes sujeitos se encontram.
O enredo é composto por vinte e três capítulos, que se dividem em três partes: “Trezentas pontes”; “As quimeras” e “Epílogo”. Todas elas apresentam histórias autônomas, que se mostram conectadas no decorrer da narrativa. No primeiro capítulo, focaliza-se o relato sobre Ruslan. A narrativa se inicia e termina às vésperas da celebração dos trezentos anos de São Petersburgo, como expressa na carta de Andrei: “Construíram trezentas pontes, uma para cada ano, mas nenhuma leva para lugar nenhum [...]” (CARVALHO, 2009, p. 22).
Vale ressaltar o momento em que Ruslan vai ao encontro de sua mãe, Anna, dando a ela uma nova oportunidade para a maternidade, mas novamente é rejeitado. Na obra, as histórias são sempre pontuadas por movimentos de delicadeza e outros de violência. Os destinos dos personagens são incertos, pois assim como a guerra avança e altera os caminhos a serem percorridos, tanto no tempo quanto no espaço, o sentimento humano de individualidade emerge.
O título do romance, O filho da mãe, enfatiza a relação entre mães e filhos, mas as figuras maternas centrais do livro são as principais responsáveis pelo sentimento de orfandade e desamparo que culminam nas guerras subjetivas que os personagens enfrentam. Além de suscetíveis à guerra, os sujeitos só podem contar com o outro da promessa: “[...] Nenhum homem será completo enquanto não encontrar o seu kunak. Só então poderá seguir o próprio caminho em paz, sabendo que existe no mundo alguém, como ele, com quem ele pode contar na vida e na morte [...]” (CARVALHO 2009, p. 161).
A segunda parte da obra, “As quimeras”, refere-se à imagem mítica da mistura de dois embriões que resultam em um animal rejeitado e temido, pois carrega o mau agouro. O substantivo pluralizado faz referência aos dois personagens centrais, que assim como a quimera, carregam o infortúnio da rejeição social: [...] Passamos por uma casa onde havia nascido um animal que era dois sem ser nenhum. Uma égua dera à luz um potro no qual estavam misturados dois embriões. A isso chamam quimera, como depois eu ia aprender na faculdade. Era um animal estranho, parecia um potro, mas era outra coisa, dois fundidos num só, indistintos. (...). As quimeras são raras e os pastores nas montanhas as veem como portadoras de mau agouro (...). Por isso quando esses animais não morrem ao nascer, os próprios camponeses se encarregam de lhes dar um fim.[...] (CARVALHO 2009, p. 160-1).
Ruslan foi espancado e morto pelos amigos do seu meio irmão skinhead, Maksim, e conta com a omissão do marido e o silêncio da mãe omissa. Andrei foi assassinado, em missão, dando à história um desfecho trágico. Assim como a quimera, eliminada para evitar que a maldição se cumpra, ambos foram assassinados, pois eram híbridos e monstros, aos olhos daquela sociedade.
Na terceira parte, nota-se com mais ênfase os efeitos da guerra no impdimento à completude do amor buscado em meio aos escombros das relações de afeto ameaçadas. E é ao final da narrativa que podemos entender com mais clareza o verdadeiro papel do Comitê de Mães de Soldados: “não pode haver guerra sem mães. Mais do que ninguém as mães têm horror a perder” (CARVALHO, 2009, p. 186).
Essa narrativa híbrida e polifônica desafia o leitor à leitura crítica. Sua multiplicidade e riqueza temáticas retratam a complexidade das relações sociais e problematizam alguns dos principais aspectos da contemporaneidade. Uma obra digna de atenta leitura.
Carla Diaso
Bolsista de Estágio Interno Complementar da UERJ
Júlia Guimarães
Bolsista de Estágio Interno Complementar da UERJ
Nascido em 1960, no Rio de Janeiro, o escritor, tradutor e jornalista Bernardo Carvalho inaugurou seu percurso literário com a coletânia de contos Aberração (1993). Com vinte e dois anos de carreira, teve onze livros ficcionais publicados – todos pela Companhia das Letras – com destaque para Nove noites (2002), com os quais ganhou os prêmios Portugal Telecom de Literatura e Jabuti (ambos de 2003); e Mongólia (2003), premiado pela Associação Paulista de Críticos Arte (APCA) e, novamente, pelo Jabuti, em 2004.
Seu mais recente romance, O filho da mãe (2009), é fruto de um projeto financiado pela Lei Rouanet e contou com a publicação também pela Companhia das Letras. Os autores deveriam viajar a recantos do globo para lá ambientarem suas obras, cujo tema giraria necessariamente em torno de uma história de amor.
Bernardo Carvalho foi enviado a São Petersburgo, na Rússiacom a missão de escrever uma história de amor, de acordo com o projeto Amores Expressos. Durante sua permanência na cidade, Bernardo deu ao seu romance voz a dois outsiders, sendo os personagens principais estrangeiros em sua própria nação e em seu próprio berço familiar, a saber, o russo Andrei e o tchetcheno Ruslan. Sua própria vivêsncia e seus percalços de viagem estão ficcionalizados, em O filho da mãe.
A narrativa contaa luta de mulheres para que seus filhos sobrevivam à guerra. A trama ocorre, principalmente, em São Petersburgo e se desenvolve no período da Segunda Guerra na Tchetchênia: é um drama de gerações, que faz com que seus personagens vivam a experiência da perda, do exílio, do preconceito e da desumanização.
A narrativa registra o encontro de Ruslan e Andrei, traçando um painel com diversas histórias autônomas que acabam se cruzando, revelando sua interrelação ao longo da trama. Isto, por sua vez, tende a surpreender o leitor e a provocá-lo, na qualidade de crítico atento.
Dentre a confluência de histórias, Andrei e Ruslan são dois personagens marcantes e relevantes na construção da narrativa: Ruslan é um refugiado da Tchetchênia que, após as obsessivas negociações de sua avó, Zainap, consegue imigrar para São Petersburgo, em busca de sobrevivência e do reencontro com sua mãe, que o abandonara na infância; já Andrei é um recruta do Cáucaso, filho de um pai brasileiro, que não o vê desde os dez anos de idade, com uma mãe frágil que o deixa à mercê da guerra, por influência do segndo marido.
Quando ordenado pelo Oficial da Reserva para uma missão externa e especial, Andrei conhece Ruslan, por caminhos tortuosos, e acaba se apaixonando pelo desconhecido: “A ideia de uma vulnerabilidade maior que a sua lhe desperta amor” (CARVALHO, 2009, p. 139). Por ter o dinheiro do quartel furtado, Andrei é obrigado a desertar e sair à caça do assaltante que, sabemos, é Ruslan. Empreendendo uma busca desesperada, ele encontra o ladrão e para a sua surpresa vê nele o seu espelho, seu duplo (Doppelgänger). Trata-se, portanto, de duas histórias, duas vidas marcadas pela guerra, pelo preconceito, pela maternidade negada, omissa ou indiferente.
Embora esse encontro seja marcante na narrativa, são os desencontros, que constroem o primeiro plano do romance. Esses descaminhos são personificados pelo caos que se configura pelo cenário de destruição descrito na obra, por conta da Segunda Guerra da Tchetchêmia, contexto histórico dos conflitos vividos pelos personagens centrais.
Em O filho da mãe, encontramos algumas temáticas convergentes, interligadas e orientadas pelo fio condutor da narrativa: a maternidade. O retrato da orfandade e do abandono é a própria imagem das guerras e se perpetua no enredo, mostrando que na ficção de Carvalho (2009, p. 186) “mães têm muito mais a ver com a guerra do que imaginam”.
Nesta narrativa, a maternidade é associada à guerra e a figura materna assemelha-se às próprias ruínas do confronto. A figura materna é também homóloga às ruínas da cidade de São Petersburgo. Identificamos uma espécie de anomia provocada por lutas, grandes perdas e vazio decorrentes das transformações do mundo social moderno. Essa anomia é alegorizada na figura das mães, cujas identidades são atravessadas pelas intensas transformações que ocorrem em São Petersburgo: [...] É a mais artificial de todas as cidades. Em três séculos, tentaram três nomes, em vão. Um nome por século. Construíram trezentas pontes, umapara cada ano, mas nenhuma leva a lugar nenhum. Ninguém nunca vai sair daqui.” (CARVALHO, 2009, p. 22). (Grifos nossos).
Um exemplo dessa desumanização é a história de Zainap, avó de Ruslan, disposta a pagar propinas ou mesmo a morrer pela sobrevivência de seu neto e as duas mulheres que movimentam o início da narrativa. Outro exemplo é o de Marina, cujo filho se suicida por conta da guerra; e Iúlia, que após ser diagnosticada em estado terminal, “sentiu que não podia morrer sem salvar a vida de alguém”. A guerra é o próprio estado de desumanização, que a ideia da morte ratifica. O amor, no entanto, seja das mães ou entre os dois rapazes, se torna a possibilidade do humano, no romance.
Histórias de mães e filhos desamparados que se (re) encontram, formando uma multiplicidade de vozes, relatos e perspectivas, o manejo dialógico do narrador-onisciente sugere identidades esfaceladas pela guerra. Andrei e Ruslan incorporam no romance a problematização de algumas questões latentes na contemporaneidade: o não-pertencimento, a xenofobia e os diversos modos de preconceitos.
Ambos os personagens deslocam-se de suas cidades de origem para se protegerem da guerra civil. Da mesma forma, os estrangeiros, sobretudo os imigrantes do Cáucaso, são tratados como uma espécie de sujeira das obras de São Petesburgo, tendo como exemplo o apelido pejorativo que Maksim usa para designar Ruslan: “bunda-preta”.
Sob a ótica carvaliana, vemos não somente uma nação que se quer moderna e em construção, mas também um lugar de opressão, racismo e exclusão. Essa atmosfera é provocada por um narrador heterodiegético, que nos dá uma dimensão de espaço opressor e de medo: [...] Anna não faz ideia de quem possa ter lhe enviado uma encomenda registrada. É estranho receber um aviso debaixo da porta. Se o tivessem deixado na caixa de correio da portaria, como de hábito, ela nunca o teria pegado. Não recebe cartas. Não abre envelopes. Quem a conhece sabe. É uma espécie de fobia. Há vinte anos, evita receber notícias [...] (CARVALHO,2009, p. 49).
Dentro desse eixo narrativo, notam-se várias associações feitas pelos personagens. Dentre elas, destacamos a fala da avó de Ruslan, que passou a associar a viagem à perda e aos desencontros. Já Ruslan, liga o sexo à trégua, e o amor à iminência da morte. Essas ligações alegorizam a trajetória de cada personagem, suas formas características de lidar com a vida e suas perdas. As relações são, acima de tudo, maneiras de entender o caos em que estes sujeitos se encontram.
O enredo é composto por vinte e três capítulos, que se dividem em três partes: “Trezentas pontes”; “As quimeras” e “Epílogo”. Todas elas apresentam histórias autônomas, que se mostram conectadas no decorrer da narrativa. No primeiro capítulo, focaliza-se o relato sobre Ruslan. A narrativa se inicia e termina às vésperas da celebração dos trezentos anos de São Petersburgo, como expressa na carta de Andrei: “Construíram trezentas pontes, uma para cada ano, mas nenhuma leva para lugar nenhum [...]” (CARVALHO, 2009, p. 22).
Vale ressaltar o momento em que Ruslan vai ao encontro de sua mãe, Anna, dando a ela uma nova oportunidade para a maternidade, mas novamente é rejeitado. Na obra, as histórias são sempre pontuadas por movimentos de delicadeza e outros de violência. Os destinos dos personagens são incertos, pois assim como a guerra avança e altera os caminhos a serem percorridos, tanto no tempo quanto no espaço, o sentimento humano de individualidade emerge.
O título do romance, O filho da mãe, enfatiza a relação entre mães e filhos, mas as figuras maternas centrais do livro são as principais responsáveis pelo sentimento de orfandade e desamparo que culminam nas guerras subjetivas que os personagens enfrentam. Além de suscetíveis à guerra, os sujeitos só podem contar com o outro da promessa: “[...] Nenhum homem será completo enquanto não encontrar o seu kunak. Só então poderá seguir o próprio caminho em paz, sabendo que existe no mundo alguém, como ele, com quem ele pode contar na vida e na morte [...]” (CARVALHO 2009, p. 161).
A segunda parte da obra, “As quimeras”, refere-se à imagem mítica da mistura de dois embriões que resultam em um animal rejeitado e temido, pois carrega o mau agouro. O substantivo pluralizado faz referência aos dois personagens centrais, que assim como a quimera, carregam o infortúnio da rejeição social: [...] Passamos por uma casa onde havia nascido um animal que era dois sem ser nenhum. Uma égua dera à luz um potro no qual estavam misturados dois embriões. A isso chamam quimera, como depois eu ia aprender na faculdade. Era um animal estranho, parecia um potro, mas era outra coisa, dois fundidos num só, indistintos. (...). As quimeras são raras e os pastores nas montanhas as veem como portadoras de mau agouro (...). Por isso quando esses animais não morrem ao nascer, os próprios camponeses se encarregam de lhes dar um fim.[...] (CARVALHO 2009, p. 160-1).
Ruslan foi espancado e morto pelos amigos do seu meio irmão skinhead, Maksim, e conta com a omissão do marido e o silêncio da mãe omissa. Andrei foi assassinado, em missão, dando à história um desfecho trágico. Assim como a quimera, eliminada para evitar que a maldição se cumpra, ambos foram assassinados, pois eram híbridos e monstros, aos olhos daquela sociedade.
Na terceira parte, nota-se com mais ênfase os efeitos da guerra no impdimento à completude do amor buscado em meio aos escombros das relações de afeto ameaçadas. E é ao final da narrativa que podemos entender com mais clareza o verdadeiro papel do Comitê de Mães de Soldados: “não pode haver guerra sem mães. Mais do que ninguém as mães têm horror a perder” (CARVALHO, 2009, p. 186).
Essa narrativa híbrida e polifônica desafia o leitor à leitura crítica. Sua multiplicidade e riqueza temáticas retratam a complexidade das relações sociais e problematizam alguns dos principais aspectos da contemporaneidade. Uma obra digna de atenta leitura.