O filho da mãe: romance do escritor bernardo carvalho
CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208p.
Larissa Moreira Fidalgo.
Fruto de um projeto bastante controverso, O filho da mãe, segundo volume da coleção Amores Expressos, do escritor brasileiro Bernardo Carvalho, busca, através da representação de um cenário bélico, fragmentado e sangrento, penetrar no mais íntimo e profundo sentimento feminino: o amor materno. O romance estrutura-se, pois, nesse paradoxo, no qual “as mães tem mais a ver com as guerras do que imaginam”.
Bernardo Carvalho nasceu em 1960, no Rio de Janeiro. Graduado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, aventurou-se no universo literário em 1993 com o livro de contos Aberração. Dois anos mais tarde, escreve seu primeiro romance, Onze. Publicou, ainda, Os bêbados e os sonâmbulos (1996), Teatro (1998), As iniciais (1999), Medo de Sade (2000), Nove noites (2002), Mongólia (2003), O sol se põe em São Paulo (2007) e, por fim, O filho da mãe (2009), todos pela Companhia das Letras. Mesclando habilmente elementos ficcionais e históricos, diferentes gêneros discursivos com uma multiplicidade de vozes e pontos de vista, o autor, vencedor de diversos prêmios como o da Biblioteca Nacional, Jabuti e Portugal Telecom, destaca-se como um escritor consagrado da literatura brasileira contemporânea.
Em 2007, um grupo de escritores brasileiros foi selecionado para que pudesse escrever uma história de amor ambientada nos mais diferentes lugares do planeta. Carvalho foi enviado à Rússia, mais precisamente a São Petersburgo. Uma vez que não conhecia a cultura e a história da cidade, optou por conhecer esse vasto e riquíssimo universo através de livros jornalísticos e históricos que coincidiam, sobretudo, com a Segunda Guerra da Tchetchênia (plano de fundo do romance).
Embora, antes mesmo de viajar já tivesse em mente que escreveria sobre a história de amor entre dois rapazes, pode-se dizer que, de certo modo, o romance foi influenciado pelos relatos da jornalista Anna Politkovskaya, pois foi através deles que o autor entrou em contato com o Comitê das Mães dos Soldados (comissão criada no governo Putin na tentativa de salvar os filhos da guerra). Surge então a ideia de dar voz a uma dessas mães.
Após sofrer uma tentativa de assalto em seu terceiro dia na cidade de São Petersburgo, Carvalho passou a observá-la subjetivamente, concebendo-a como um lugar inóspito, capaz de desencadear horror àqueles (os personagens e ele mesmo) que não pertencem a ela. Desse modo, a escolha dos protagonistas – um recruta do Cáucaso e um refugiado da Tchetchêniaem muito foi determinada pelo leitmotiv do romance, mas também por suas próprias experiências em um lugar estrangeiro.
Entretanto, a história de amor entre eles permanece em segundo plano, uma vez que o eixo principal são as mães na tentativa, ora de proteger seus filhos, ora de compensar sua perda por meio de uma ação salvadora. Morte e fuga configuram-se, portanto, como sendo as únicas soluções para os diversos conflitos abordados em O filho da mãe, a verdadeira quimera: “reproduzir faz parte da natureza humana, tanto quanto a guerra. Reproduzir e matar” (CARVALHO, 2009, p.156).
Embora esteja condicionada histórica e socialmente, a prosa carvaliana não está reduzida à ideologia. Ela nos mostra o quanto a literatura tende para a universalidade, representando não um sujeito específico, mas muitos em um só. Organizada em vinte e três capítulos, dividida em três partes – Trezentas Pontes, As quimeras e Epílogo – carregadas de significação, a trama, com alta voltagem emocional e poética, desloca-se no tempo e espaço, em um universo paradoxal e ambíguo: Oiapoque, Nieva, Grozni, Japão. Histórias aparentemente autônomas mostram-se interligadas pela dor, pela perda, pelo amor materno. Personagens subalternos rejeitados, fora do lugar, se desvencilhando de tudo e de todos. Morte e perda são apenas consequências dessas relações humanas personificadas na figura monstruosa da quimera.
A história é conduzida por um narrador heterodiegédico (diferentemente de seus romances anteriores) que, através de uma visão totalizadora da diegese, é capaz de realizar comentários acerca das atitudes das personagens, caracterizando não somente aspectos físicos, mas revelando gradativamente a sua interioridade: “Anna não faz ideia de quem possa ter lhe enviado uma encomenda registrada. É estranho receber um aviso debaixo da porta. Se o tivessem deixado na caixa de correio da portaria, como de hábito, ela nunca o teria pegado. Não recebe cartas. Não abre envelopes. Quem a conhece sabe. É uma espécie de fobia. Há vinte anos, evita receber notícias” (CARVALHO, 2009, p.49).
No primeiro capítulo do romance, entramos em contato com duas personagens fundamentais para a composição do enredo, pois é uma conversa entre elas que “dá início à história” (CARVALHO, 2009, p. 19). Após receber a notícia que está com uma doença terminal, Iúlia Stepánova decide que não pode “morrer sem salvar uma vida” (CARVALHO, 2009, p.12). Por acaso, dirige-se ao Comitê das Mães dos Soldados de São Petersburgo, organização humanitária internacional em defesa dos direitos dos rapazes envolvidos na guerra. Nesse local, reconhece Marina Bóndareva, colega de escola que não via há quarenta anos. No caminho para o café, Marina recorda um suposto encontro entre a avó de Iúlia e a poetisa russa Anna Akhmátova, na porta da prisão de Kresty. É evidente que o discurso entre elas é um hipotexto privilegiado, mostrando como as narrativas não remetem apenas à matéria externa, mas também como elas se relacionam com outros textos. Por conseguinte, a agudez do leitor é fundamental na identificação dos fenômenos transtextuais, como a citação ao poema de Akhmátova, a qual transcrevemos em parte: “Passei dezessete meses nas filas das prisões de Leningrado./ Uma vez, alguém me reconheceu. E então uma mulher de lábios azuis atrás de mim, que obviamente nunca ouvira ninguém me chamar pelo nome, saiu do estupor ao qual todos tinham sucumbido e sussurrou no meu ouvido (ali, todo mundo sussurrava):/ ‘Você pode descrever isto?’./ E eu respondi: ‘Sim, eu posso’./ E, então,o que parecia um sorriso passou pelo que um dia havia sido um rosto” (CARVALHO, 2009, p.17).
As duas mulheres encontram-se unidas pela maternidade, pelo sentimento de orfandade, de desamparo. Marina, cujo filho cometeu suicídio com medo de voltar ao exército após ter sido seqüestrado pelas milícias tchetchenas, e Iúlia, como mencionado anteriormente, pela tentativa de salvar um rapaz da guerra.
Marina relata, com pesar, que não conseguiu salvar um rapaz de dezenove anos que foi morto nas montanhas ao sul de Grózni, o qual deixou um bilhete: “Escrevo como o louco que não pode parar de cantarolar sua ladainha sem sentido, nem que seja para não ouvir o ruído do mundo, falar só, mais alto que o ruído do mundo. Escrevo para o caso de você decidir voltar, para assombrar esta cidade. É a mais artificial de todas as cidades. Em três séculos, tentaram três nomes, em vão. Um nome por século. Construíram trezentas pontes, uma para cada ano, mas nenhuma leva a lugar nenhum. Ninguém nunca vai sair daqui” (CARVALHO, 2009, p. 22).
Esse lugar é São Petersburgo, “cidade construída segundo a lógica da visibilidade total [...] para ninguém escapar” (CARVALHO, 2009, p.132), local de confluência das diversas tramas desenvolvidas nos capítulos seguintes, todas entrelaçadas pela maternidade. “Não pode haver guerras sem mães [...] Você é capaz de matar por um filho. E acaba recebendo o troco na mesma moeda quando a guerra o leva [...] Sem querer ver é daí que nascem as guerras” (CARVALHO, 2009, p.186).
O estatuto do espaço é tão importante quanto os outros elementos da narrativa, uma vez que é determinante no desenvolvimento da ação, é o lugar de confronto entre os heróis problemáticos e o mundo austero. Não há para onde ir. Não há refúgio. A inquietação do herói transcende o espaço físico, alcançando a subjetividade dos sonhos que precisam ser reprimidos. “Sonhara que representava o que não podia caber no sonho [...] O que podia existir em qualquer lugar, menos no meu próprio sonho. Por isso, tive que acordar rápido, para não desaparecer” (CARVALHO, 2009, p.36).
Pais ausentes, mães culpadas por não conseguirem dar outro destino aos filhos são o estopim para a eclosão de um conflito orientado pela vulnerabilidade, pela fuga do passado e do futuro. A rejeição também provém do próprio seio familiar das personagens. A tensão entre países deixa de ser pura e simplesmente política, sendo espelhadas nas próprias relações sociais. As questões da identidade e da subalternidade também são bastante exploradas no romance através da figura dos protagonistas.
De um lado, Ruslan, caucasiano, rejeitado pela mãe, pois “ninguém ama por obrigação” e cujo pai foi morto na guerra, consegue, graças à ajuda da avó, sair do campo de refugiados na Inguchétia. Segue em direção à São Petersburgo na tentativa de encontrar suas raízes, desencadeando um confronto entre gerações. De outro, Andrei – filho de um brasileiro exilado político com uma russa- que, pelas circunstâncias foi obrigado, pelo padrasto, após o retorno do pai ao Brasil, a servir o exército.
O encontro entre eles ocorre quando Ruslan rouba o dinheiro de Andrei, “o dinheiro da prostituição para o sustento do exército russo.” (P.120). Ambos compartilham da vulnerabilidade, escondendo-se em escombros, pois “os dois só podem existir no limite da inverossimilhança.” (P.133), originando uma história de amor. “É possível que não se dê conta de que terminou por associar o sexo às ruínas ao risco, à força de tê-lo descoberto em meio a uma guerra, e de buscá-las, as ruínas, sempre que encontra alguém, por ter sido obrigado a reconhecer nelas o cenário reconfortante do lar onde já não há possibilidade de reconforto. Quando não há mais nada, há ainda o sexo e a guerra [...] A ideia de uma vulnerabilidade maior que a sua lhe desperta o amor.” (P.139).
O desfecho desses conflitos se resume na figura da quimera, aberração portadora de mau agouro, rejeitada pela natureza. “As quimeras morrem para que sobreviva o pacto dos que não podem contar nem com Deus nem com os anjos.” (P.161). A morte simboliza a tentativa de expurgação e purificação dos sentimentos dialogando com a poética aristotélica.
Destacando-se com um universo híbrido, dialógico e polifônico, o romance transpõe leituras superficiais, equacionando história e ficção, pragmatismo e sensibilidade, fronteiras e deslocamentos, em busca de uma escrita capaz de retratar a pluralidade das relações sociais, econômicas e políticas.
A trama, portanto, demanda por leitores capazes de analisar criticamente a discursividade textual e extralinguística, ou seja, as relações que o texto mantém com outros discursos, com o mundo e com sua própria estrutura interna.
Assim sendo, O filho da mãe, é uma escolha certeira para aqueles que anseiam por uma literatura complexa, envolvente e universal.