novamente o real: a prosa de risco de os bêbados e os sonâmbulos.
Paulo César Oliveira.
CARVALHO, Bernardo. Os bêbados e os sonâmbulos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Um ano após o lançamento de Onze: uma história, Bernardo Carvalho traz a público seu romance Os bêbados e os sonâmbulos. Em tudo esse segundo romance confirma o primeiro: Carvalho é uma voz autoral a construir, romance a romance, uma poética a qual chamaremos de viagem ficcional, isto é, uma ficção da errância, cujo roteiro se estende ainda aos liames narrativos. Se observarmos os elementos paratextuais que se anunciam em Os bêbados e os sonâmbulos, veremos que cada um deles dialoga com a poética de Carvalho. Desde a capa, em que se observa um trabalho gráfico “sobre foto de observadores de teste atômico (1951), de autoria desconhecida”[1], passando pela dedicatória, que já é uma espécie de traição da obra, traição à própria narrativa e prenúncio do que o leitor deve esperar. Nessa dedicatória, o suposto autor agradece à sua mãe por ter-lhe contado a história, reproduzida no livro, e a qual o narrador prometeu não contar a ninguém, sabendo que descumpriria a promessa. O mote da traição, do jogo, continua a estabelecer nesse segundo romance certas bases, que o realismo à Carvalho procura sustentar. Voltando à questão da foto, ilustrativa do que estamos aqui a defender, nela vemos um grupo de observadores de um teste nuclear. Na contracapa, uma foto quase idêntica parece repetir a da capa, mas percebemos uma paisagem marítima que dela destoa. Ocorre que o leitor é levado ao universo farsesco da foto, mas o que supostamente veem aqueles sujeitos é um dado do real: um teste nuclear. Esse desmonte dos mecanismos da verossimilhança, tanto na foto quanto na dedicatória, revelam o dado marcante já expresso em Onze: uma história, a de que a poética de Carvalho se estabelece em um duplo jogo: o que o realismo constrói a ficção descose. Como uma Penélope pós-moderna, os narradores de Carvalho estabelecem relações com o fato histórico para subvertê-lo a todo instante. Sua narrativa se ampara no factual para assim destacar os poderes da ficção frente ao que a verdade procura instituir. E como se dá esse jogo em Os bêbados e os sonâmbulos?
Na trama, um militar homossexual sai em busca de um mistério de seu passado, ao descobrir que sofre de uma singular doença que apaga progressivamente sua memória, e que o fará progressivamente apagar sua própria identidade e seu passado. Ocorre que tudo na narrativa é instável. Não podemos confiar na veracidade do narrado, embora o jogo ficcional de Carvalho aponte sempre para o fato histórico como uma suposta base segura de naturalização do que nos é contado: a ditadura militar do Cone-Sul, datas e relatos históricos etc. Mas como tudo é desfeito pela narração, o que o leitor terá em mãos é uma sequência de discursos que transitam entre o realismo mais deslavado e o absurdo das situações criadas. Daí que os relatos históricos são ora incompletos, ora questionados em sua validade documental; as cartas são documentos pouco confiáveis; a ciência é desconstruída, em suma: nada escapa ao olhar corrosivo do narrador, nem a psiquiatria, nem a autoridade do autor, ou ainda o documento. Nesse romance, voltam os temas dos duplos, assim como do papel da arte. Assim como em Onze, um dos temas centrais de Os bêbados e os sonâmbulos é o estatuto da arte. Aqui, um grupo de pintores faz um pacto de, após a morte de cada membro da confraria, os remanescentes desenterrarem os mortos e pintá-los. Os quadros são guardados em segredo, mas por algum motivo alguém resolve recuperar os quadros e trazer à tona os fatos, o que provoca um escândalo, prontamente abafado. Em uma sequência do romance, vemos a relação entre realismo e absurdo: “O curioso é que todo o aparente absurdo desses procedimentos contrastava radicalmente com os próprio quadros, de um realismo a toda a prova”. Na mesma sequência, dir-se-á a respeito de um dos pintores membro do grupo: “Ao contrário das dos companheiros, suas cenas eram de um realismo constrangedor, porque, à diferença dos outros, que simulavam a vida dos mortos, era a morte de uma maneira nunca imaginada que brotava ali” (CARVALHO, 1996, p. 73). Revela-se assim outra relação: entre realismo e loucura. Os parentes dos pintores mantêm os quadros guardados e longe do alcance do público e dos mercados, uma espécie de maçonaria artística que pensa guardar a “verdade da obra”: “Não querem participar do mercado das artes. Há momentos em que a loucura é mais sã, não é mesmo?, muitas vezes eu prefiro a loucura, meu caro (...)” (CARVALHO, 1996, p. 75).
Assim, a dupla acepção que se estabelece em toda obra opõe: arte e mistificação; realismo e absurdo: afetações que produzem efeitos versus afetações que produzem discursos; narrativas duplas que se complementam e afastam etc. Novamente, algumas relações intertextuais, também obsessivas na obra de Carvalho, aqui se apresentam. Uma delas é a relação intertextual com Coração das trevas, de Joseph Conrad: “Era um outro tipo de serviço. Eu não podia imaginar. Começava a me irritar toda aquela representação. Perguntei qual o problema. Ele disse que não havia nenhum. Mas que não haveria perguntas também. Um psiquiatra tinha enlouquecido no Chile. Desaparecera fazia nove anos, enfurnando-se em uma fazenda aos pés dos Andes, entre os vulcões, ou talvez ao longo do campo de gelo, não sabia, ninguém sabia (CARVALHO, 1996, p. 25).
O romance é dividido em duas partes: “Os bêbados e os sonâmbulos” (parte I) e “Os executivos: uma farsa” (parte II). Na segunda parte, a narrativa se abre dessa forma: “Daqui para a frente, tudo é verdade. Isto não é uma ficção. Nada foi inventado. Nada é mera coincidência, embora não possa confirmar nenhuma palavra do que ele disse” (CARVALHO, 1996, p. 115). A essa altura, o leitor, acostumado aos revezes da relação entre ficção e verdade estabelecida por Carvalho, já está ciente de que os fios de Penélope aqui estão todos ou embolados ou já foram destrançados.
Nesse embate, a segunda incursão de Carvalho pelo romance confirma sua estreia e a reforça. Daqui em diante, o que se verá é um escritor cada vez mais instado a provocar os limites entre real e ficcional, trançando aquilo que Wolfgang Iser chamou outrora de “preparação do imaginário”. Esse processo, cabe ao leitor desvendar. Uma obra exige sempre a participação de um leitor ativo. Na ficção de Carvalho esse leitor também deve ser muito desconfiado, ou melhor, deve ser um bom jogador, especialmente habilitado a reconhecer e blefe a fim de vencer a partida e, quem sabe, ao final, não sem certa astúcia e teoria, desvendar as regras do jogo.
[1] As informações constam em Carvalho, Bernardo. Os bêbados e os sonâmbulos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 4.
CARVALHO, Bernardo. Os bêbados e os sonâmbulos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Um ano após o lançamento de Onze: uma história, Bernardo Carvalho traz a público seu romance Os bêbados e os sonâmbulos. Em tudo esse segundo romance confirma o primeiro: Carvalho é uma voz autoral a construir, romance a romance, uma poética a qual chamaremos de viagem ficcional, isto é, uma ficção da errância, cujo roteiro se estende ainda aos liames narrativos. Se observarmos os elementos paratextuais que se anunciam em Os bêbados e os sonâmbulos, veremos que cada um deles dialoga com a poética de Carvalho. Desde a capa, em que se observa um trabalho gráfico “sobre foto de observadores de teste atômico (1951), de autoria desconhecida”[1], passando pela dedicatória, que já é uma espécie de traição da obra, traição à própria narrativa e prenúncio do que o leitor deve esperar. Nessa dedicatória, o suposto autor agradece à sua mãe por ter-lhe contado a história, reproduzida no livro, e a qual o narrador prometeu não contar a ninguém, sabendo que descumpriria a promessa. O mote da traição, do jogo, continua a estabelecer nesse segundo romance certas bases, que o realismo à Carvalho procura sustentar. Voltando à questão da foto, ilustrativa do que estamos aqui a defender, nela vemos um grupo de observadores de um teste nuclear. Na contracapa, uma foto quase idêntica parece repetir a da capa, mas percebemos uma paisagem marítima que dela destoa. Ocorre que o leitor é levado ao universo farsesco da foto, mas o que supostamente veem aqueles sujeitos é um dado do real: um teste nuclear. Esse desmonte dos mecanismos da verossimilhança, tanto na foto quanto na dedicatória, revelam o dado marcante já expresso em Onze: uma história, a de que a poética de Carvalho se estabelece em um duplo jogo: o que o realismo constrói a ficção descose. Como uma Penélope pós-moderna, os narradores de Carvalho estabelecem relações com o fato histórico para subvertê-lo a todo instante. Sua narrativa se ampara no factual para assim destacar os poderes da ficção frente ao que a verdade procura instituir. E como se dá esse jogo em Os bêbados e os sonâmbulos?
Na trama, um militar homossexual sai em busca de um mistério de seu passado, ao descobrir que sofre de uma singular doença que apaga progressivamente sua memória, e que o fará progressivamente apagar sua própria identidade e seu passado. Ocorre que tudo na narrativa é instável. Não podemos confiar na veracidade do narrado, embora o jogo ficcional de Carvalho aponte sempre para o fato histórico como uma suposta base segura de naturalização do que nos é contado: a ditadura militar do Cone-Sul, datas e relatos históricos etc. Mas como tudo é desfeito pela narração, o que o leitor terá em mãos é uma sequência de discursos que transitam entre o realismo mais deslavado e o absurdo das situações criadas. Daí que os relatos históricos são ora incompletos, ora questionados em sua validade documental; as cartas são documentos pouco confiáveis; a ciência é desconstruída, em suma: nada escapa ao olhar corrosivo do narrador, nem a psiquiatria, nem a autoridade do autor, ou ainda o documento. Nesse romance, voltam os temas dos duplos, assim como do papel da arte. Assim como em Onze, um dos temas centrais de Os bêbados e os sonâmbulos é o estatuto da arte. Aqui, um grupo de pintores faz um pacto de, após a morte de cada membro da confraria, os remanescentes desenterrarem os mortos e pintá-los. Os quadros são guardados em segredo, mas por algum motivo alguém resolve recuperar os quadros e trazer à tona os fatos, o que provoca um escândalo, prontamente abafado. Em uma sequência do romance, vemos a relação entre realismo e absurdo: “O curioso é que todo o aparente absurdo desses procedimentos contrastava radicalmente com os próprio quadros, de um realismo a toda a prova”. Na mesma sequência, dir-se-á a respeito de um dos pintores membro do grupo: “Ao contrário das dos companheiros, suas cenas eram de um realismo constrangedor, porque, à diferença dos outros, que simulavam a vida dos mortos, era a morte de uma maneira nunca imaginada que brotava ali” (CARVALHO, 1996, p. 73). Revela-se assim outra relação: entre realismo e loucura. Os parentes dos pintores mantêm os quadros guardados e longe do alcance do público e dos mercados, uma espécie de maçonaria artística que pensa guardar a “verdade da obra”: “Não querem participar do mercado das artes. Há momentos em que a loucura é mais sã, não é mesmo?, muitas vezes eu prefiro a loucura, meu caro (...)” (CARVALHO, 1996, p. 75).
Assim, a dupla acepção que se estabelece em toda obra opõe: arte e mistificação; realismo e absurdo: afetações que produzem efeitos versus afetações que produzem discursos; narrativas duplas que se complementam e afastam etc. Novamente, algumas relações intertextuais, também obsessivas na obra de Carvalho, aqui se apresentam. Uma delas é a relação intertextual com Coração das trevas, de Joseph Conrad: “Era um outro tipo de serviço. Eu não podia imaginar. Começava a me irritar toda aquela representação. Perguntei qual o problema. Ele disse que não havia nenhum. Mas que não haveria perguntas também. Um psiquiatra tinha enlouquecido no Chile. Desaparecera fazia nove anos, enfurnando-se em uma fazenda aos pés dos Andes, entre os vulcões, ou talvez ao longo do campo de gelo, não sabia, ninguém sabia (CARVALHO, 1996, p. 25).
O romance é dividido em duas partes: “Os bêbados e os sonâmbulos” (parte I) e “Os executivos: uma farsa” (parte II). Na segunda parte, a narrativa se abre dessa forma: “Daqui para a frente, tudo é verdade. Isto não é uma ficção. Nada foi inventado. Nada é mera coincidência, embora não possa confirmar nenhuma palavra do que ele disse” (CARVALHO, 1996, p. 115). A essa altura, o leitor, acostumado aos revezes da relação entre ficção e verdade estabelecida por Carvalho, já está ciente de que os fios de Penélope aqui estão todos ou embolados ou já foram destrançados.
Nesse embate, a segunda incursão de Carvalho pelo romance confirma sua estreia e a reforça. Daqui em diante, o que se verá é um escritor cada vez mais instado a provocar os limites entre real e ficcional, trançando aquilo que Wolfgang Iser chamou outrora de “preparação do imaginário”. Esse processo, cabe ao leitor desvendar. Uma obra exige sempre a participação de um leitor ativo. Na ficção de Carvalho esse leitor também deve ser muito desconfiado, ou melhor, deve ser um bom jogador, especialmente habilitado a reconhecer e blefe a fim de vencer a partida e, quem sabe, ao final, não sem certa astúcia e teoria, desvendar as regras do jogo.
[1] As informações constam em Carvalho, Bernardo. Os bêbados e os sonâmbulos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 4.