Memória e Identidade
Larissa Moreira Fidalgo
Bolsista de Iniciação Científica da UERJ (PIBIC UERJ)
Reconstituir os acontecimentos passados sempre foi e sempre será um longo e pedregoso caminho a ser percorrido. Como atestou Beatriz Sarlo (2007, p. 12), o tempo do passado, não podendo ser eliminado, transforma-se em um perseguidor que ora escraviza, ora liberta. Como elemento essencial da concepção do tempo e de nossa identidade, o passado tem despertado a atenção da crítica hodierna que, reconhecendo a impossibilidade de conhecê-lo “verdadeiramente” senão através de seus vestígios, busca novas abordagens capazes de lidar com esse “fardo da história” (HEGEL apud Le Goff, 1992, p. 204). Nessa perspectiva, a memória, diante da sua capacidade de repensar o passado e subvertendo a causalidade das certezas historiográficas, é um processo significativo pelo qual se pode alcançar, mesmo de maneira fragmentada, ao garantir o direito de lembrança, uma imagem interpretável do tempo frente a incontáveis esquecimentos que denunciam dispositivos estético-políticos homogeneizantes. E é justamente a esse paradigma pós-moderno, capaz de nos oferecer diferentes “visões do passado”, que Memória e identidade se volta. Tomando o passado como objeto de suas considerações, a coletânea de treze ensaios, organizada por Paulo César de Oliveira e Shirley de Souza Comes Carreira, nos apresenta um estudo crítico e analítico do uso da memória na (re) construção das identidades perdidas, sejam elas individuais ou coletivas. Nesse sentido, reflexões de diferentes áreas de conhecimento justapostas – Literatura, História, Religião, Ciências Sociais – permitem o deslocamento crítico nos centros e margens da sociedade contemporânea e nas frestas de sua representação, pois “o sujeito não só tem experiências como pode comunicá-las, construir seu sentido e, ao fazê-lo, afirmar-se como sujeito” (SARLO, 2007, p. 39).
Em “O sentimento íntimo da literatura brasileira, no século XIX: o nacionalismo”, Anderson Xavier, doutorando em Literatura Brasileira pela UFRJ, propõe um espaço de questionamento acerca do processo de criação de uma literatura de caráter nacionalista revelado na dialética entre o próprio e o imposto. Utilizando as cartas alencarianas sobre a Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, e de alguns textos críticos de Machado de Assis para o estudo desse episódio mal compreendido de nossa historiografia literária, o autor esboça uma reflexão sobre a formação, a ascensão e os percalços da consolidação de uma poética “brasileira”. Assim, contrastando os empreendimentos políticos e estéticos de Magalhães, Alencar e Machado, Xavier nos oferece múltiplas versões e leituras do passado literário, que ora buscava exprimir a “cor local” e ora clamava pelo “instinto de nacionalidade”. Nesse sentido, o artigo de Xavier suscita importantes questionamentos acerca da (im) possibilidade da criação de uma literatura genuinamente brasileira. Entrementes, se a polifonia é uma condição inerente a todo indivíduo histórico, o projeto literário do século XIX e sua tentativa de edificação da identidade nacional devem ser analisados cuidadosamente a fim de não revitalizar um passado mitificado calcado nos essencialismos românticos.
Em “As recordações de Nelson Rodrigues”, Anderson Brandão, doutor em Literatura Comparada pela UFRJ, evidencia, através do estudo do teatro rodrigueano, a íntima relação entre o texto literário e memória. Considerando a memória uma propriedade fundamental da consciência histórica e coletiva, Brandão mostra que recuperar, mesmo transitoriamente, os elementos da “memória coletiva é desvendar as relações por detrás dos textos” e também as linhas de força que compõem o discurso literário. Nesse viés crítico, portanto, a tensão entre passado/presente; a questão da representatividade literária e ainda a problemática relação entre o autor e sua obra são postos em discussão neste artigo.
Debruçando-se sobre as fundamentais e polêmicas questões que rondam o universo da literatura contemporânea, está o artigo “Ficção brasileira contemporânea: memória e identidade em questão”, de Paulo César de Oliveira, Doutor em Poética pela UFRJ. Corroborando a perspectiva de Dominique Maingueneau (2001, p. 138), para quem “a literatura não é apenas um meio que a consciência tomaria emprestado para se exprimir, é também um ato que implica instituições”, o autor, sem resgatar a visão romântica de totalidade e verdade mostra como a literatura, com suas forças de mathesis, semiosis e representação, oferece um espaço de múltiplas consciências e escritas variadas. Trazendo à baila as poéticas de Bernardo Carvalho e Milton Hatoum, que operam na tensão entre narrado e vivido, entre passado e presente, o autor propõe uma leitura dessacralizadora dos preceitos clássicos em prol da heterogeneidade textual que, abarcando as instâncias de ruptura do mundo globalizado, permitiu a emergência de novos sujeitos no discurso. O estudo de Oliveira configura-se como desafio aos postulados descritivos da crítica literária tradicional.
O estudo da identidade na literatura contemporânea também está presente em “Identidades a céu aberto”, de Nonato Gurgel, doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ. Por meio do exame da sempre inquietante e sinuosa prosa de João Gilberto Noll, Gurgel nos oferece um estudo calcado na descentralização da noção humanista de sujeito unitário através do reconhecimento de que este é “composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”. Inscritos sob o signo do deslocamento no tempo e espaço, aos personagens de A céu aberto, situados na fronteira multicultural contemporânea, só resta uma saída: “o problemático e sedutor exercício da alteridade”.
Em “Imigrantes libaneses no Brasil: a representação literária do choque entre culturas”, Shirley Carreira, pós-doutora em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ, se volta para a representação literária do processo de aculturação dos imigrantes libaneses no Brasil. Através do estudo das narrativas de memória de escritores contemporâneos como Milton Hatoum, Ana Miranda e Salim Miguel, Carreira, reconhecendo que estamos inseridos em uma sociedade híbrida, dialógica e polifônica, nos mostra o importante “papel da obra literária na manutenção de uma memória étnica”.
Os estudos das literaturas africanas também merecem destaque nessa coletânea de ensaios. Voltando-se para a produção literária desse novo contingente político que provocou a Teoria Literária e a História da Literatura, ao questionar as relações entre discurso e poder, encontra-se o artigo “Vozes híbridas em cantos de liberdade”, de Robson Dutra, pós-doutor em Literaturas Africanas pela UERJ. Através da análise das poéticas de Francisco João Tenreiro e Luiz Carlos Patraquim, Dutra nos mostra como a escrita pós-colonial, buscando legitimar suas marcas identitárias e étnicas, “é marcada por uma ruptura” que dialoga intensamente com a crise do paradigma da tradicional escrita da história. Nesse processo, ao estudar a memória dos mestiços do período colonial, Dutra evidencia a recuperação das memórias culturais caracterizada como uma verdadeira matéria-prima que “desponta inicialmente como expressão do passado”.
Claudia Fabiana Cardoso, doutoranda em Literatura Comparada pela UFF, também focaliza a produção literária africana, entretanto sob outro viés. Reconhecendo a necessidade de examiná-la em sua especificidade, Cardoso, em “Sagrado e poesia na cultura tradicional africana”, nos mostra como a poesia, ao criar imagens simbólicas que operam na rememoração do mistério da criação, aproxima-se do mito e do sagrado. Desse modo, resgatando a cultura e identidade das tradicionais sociedades africanas, a poesia, segundo a autora, com sua capacidade de “reatualizar o tempo através do seu canto”, consegue superar a dicotomia passado e presente.
No que tange os estudos históricos, comecemos pelo artigo de Andréa Pessanha, doutora em História Social pela UFF. Em “Escravos, abolição e imprensa da corte: “indicam no presente e podem atestar no futuro”, a autora estuda o papel da imprensa na construção da memória e da identidade do processo de abolição da escravatura no Brasil. Analisando o discurso do jornal Gazeta Nacional, Pessanha evidencia que a escrita da história, vinculada às ações humanas e suas ideologias, pressupõe escolhas resultadas de inter-relações. Assim, no fim do regime escravocrata, um jornal de cunho republicano “pretendia construir a imagem de um escravo pacífico”, ao passo que “ao destacar a participação do liberto na conquista do Treze de Maio procurava enfraquecer o papel redentor da princesa Isabel”. Nesse sentido, o trabalho reavalia criticamente os processos identitários dos indivíduos marginalizados na sociedade brasileira.
Em “A presença dos espanhóis no Rio de Janeiro: história e cultura na sociedade carioca”, Érica Sarmiento, pós-doutora pela UERJ e especialista em estudos migratórios, nos oferece uma visão privilegiada das especificidades culturais/multiculturais da cidade maravilhosa ao traçar uma viagem ao passado histórico para verificar de que maneira a imigração espanhola ao longo dos séculos XIX e XX exerceu influência no processo de construção social do Rio de Janeiro. Da arquitetura das Igrejas, passando pela origem do cinema, até o desenvolvimento econômico e cultural carioca, Sarmiento mostra como a memória, ainda que fragmentada, pode desempenhar um papel fundamental nos processos de confluência passado/presente.
“Identidade e memória escrava: indícios por meio do estudo das famílias em Angra dos Reis, século XIX”, de Maria Cristina de Vasconcellos, doutora em História pela USP, concretiza “uma reformulação da visão sobre o escravo” através de uma escrita autoconsciente da pluralidade dos eventos históricos. Antes estigmatizado pelas próprias pesquisas científicas, até a década 70, os estudos calcados nas dinâmicas familiar e social da comunidade escrava apresentam hoje uma nova perspectiva desse sujeito como agente de sua própria história. Direcionando sua atenção para os recursos materiais e simbólicos – tempo, espaço, cultura, política e memória – das comunidades escravas que ocupavam a região de Angra dos Reis no final do século XIX, a autora estabelece uma revisão da representação e da totalização historiográficas incrustadas no imaginário social brasileiro.
Também interrogando a história contemporânea e o uso político da memória, encontramos o artigo “Quando o arquivo serve à identidade: sindicatos e o uso da memória no cenário pós-redemocratização”, de Ricardo Pimenta, doutor em Memória Social pela UFRJ. Partindo do princípio de que a história recente do Brasil, mais especificamente o período ditatorial apresenta profundas lacunas, Pimenta recorre aos arquivos das instituições sindicais como fonte privilegiada de acesso à “verdadeira” identidade do período da redemocratização do Brasil. Antes velada e censurada pelo obscuro regime militar, a memória sindical, como atesta o autor, é hoje reconhecida como lembrança oficial de uma trajetória de incessantes lutas pela reconquista da liberdade ao resgatar a identidade coletiva de uma nação.
Os estudos sobre religião também estão presentes nessa coletânea. Repensando a relação existente entre música, religião, identidade e “mercado”, Robson de Paula, em seu ensaio “Se Cristo comigo vai: notas sobre a elaboração dos princípios hinários evangélicos em uma cena musical indisciplinada (memória e identidade evangélica em questão)”, promove um estudo diacrônico da elaboração dos hinários das primeiras igrejas evangélicas fundadas no Brasil. Trabalhando com a música como fonte de memória histórica, de Paula, doutor em Ciências Sociais pela UERJ, discute o modo como os princípios teológicos adotados pela comunidade evangélica desde o século XIX são representados e difundidos por um mercado fonográfico em constante expansão.
Em “Identidade de gênero e memória religiosa: pacto autobiográfico e expressões de si mesmo na poesia de Adélia Prado”, Douglas da Conceição, doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, nos apresenta um produtivo e instigante estudo da escritura adeliana. Recorrendo às obras de Roland Barthes e Michael Foucault, acerca da questão da morte do autor, Conceição problematiza o reconhecimento de um discurso literário de autoria feminina ao legitimar a demissão da figura do autor. Nesse sentido, reconhecendo a existência de um eu autobiográfico na poética de Adélia Prado, Conceição oferece uma análise das condições particulares da enunciação imbricadas no jogo entre memória e experiência religiosa.
Diante desses treze ensaios que compõem o livro Memória e identidade, verificamos que nenhum texto, seja ele literário ou histórico, é um universo fechado e nem se apresenta apenas como mecanismo representativo do espaço no qual se encontra inserido. Ao reconhecer que o texto não pode ser reduzido a uma linha de palavras, como já advertira Roland Barthes, esta coletânea, ao voltar sua atenção para o caráter enunciativo e para os processos de funcionamento de quaisquer obras, nos mostra como as narrativas de memória, em seus testemunhos, podem preencher lacunas nem sempre contempladas pelas disciplinas ao longo da história, disciplinas essas que, no entanto, aqui agrupadas, revelam sua força motriz na reflexão sobre passado e presente, memória e identidade.
Referências bibliográficas:
LE GOFF, Jacques: Passado/Presente. In: _____. História e memória. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1992, p.203-225.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SARLO, Beatriz: Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.