Literatura e Antropologia
Em Nove noites, não são apenas as relações entre História e Literatura que estão em jogo. Ao ficcionalizar o suicídio do jovem americano Buell Quain, Bernardo Carvalho nos oferece uma visão bastante singular do universo da antropologia brasileira no final da década de 30. Indivíduos históricos e importantes nomes dessa ciência que estuda o comportamentos humano como Heloísa Alberto Torres, diretora do museu nacional, Ruth Benedict, professora da Universidade de Columbia e até mesmo Lévi-Strauss são, agora, personagens de um romance contemporâneo. Mas, afinal, Literatura e Antropologia podem conviver em harmonia? Para responder à essa pergunta e à tantas outras indagações que envolvem a ficção contemporânea com seu caráter multidisciplinar, polifônico e polissêmico, contamos com a participação do professor e pesquisador Robson Rodrigues de Paula - Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Entrevista
1. O Senhor leu Nove noites, de Bernardo Carvalho. Como avalia o romance sob o ponto de vista de um estudioso da Antropologia.
2. Frequentemente nos referimos em nossas pesquisas a Nove noites como romance da Antropologia. Tal referência procede, a seu ver?
3. Uma das personagens do romance é Heloísa Alberto Torres, que também é uma figura importante para o campo da Antropologia no Brasil. Como o Senhor analisa a abordagem de Bernardo Carvalho acerca dessa figura? Qual a importância desta estudiosa para a Antropologia Brasileira?
4. Como estudioso da antropologia, como vê a relação entre ficção e Antropologia?
5. Qual o estado atual dos estudos antropológicos? Que temas são mais urgentes ou relevantes hoje?
6. Para um estudante de Letras e leitor de Nove noites, o Senhor poderia nos dar sua visão dos limites e alcances da Etnografia?
7. Como recebeu a ficcionalização de Buell Quain, ou seja, como estudioso da área, qual a recepção dessa personagem?
8. O Senhor acredita que a literatura pode contribuir para o campo de estudos da Antropologia? E o contrário?
9. Tanto a Antropologia e a Literatura lidam com o problema da subjetividade. Que relações o Senhor estabelece entre o real ficcionalizado e o real sob as lentes antropológicas?
10. Que livros de sua área o Senhor aconselharia a um estudante de Letras interessado nas relações entre relato ficcional e relato antropológico?
Com a palavra, o pesquisador Robson Rodrigues de Paula.
Antes de tudo, obrigado pela oportunidade de discutir o livro Nove noites, de Bernardo Carvalho e, com efeito, de estabelecer uma interlocução direta com uma disciplina que tanto me mobiliza, instiga e fascina: a literatura. Sou antropólogo, formado pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UERJ e especialista em estudos da religião. Desde 2007, venho “namorando” com a etnomusicologia, uma vez que a minha tese de doutorado abordou a formação do mercado fonográfico gospel no Brasil. Portanto, as considerações que farei adiante partirão deste lugar que ocupo, ou seja, da antropologia da religião imbricada à música. Serão reflexões despretensiosas e assistemáticas de um leitor não conhecedor das discussões teóricas travadas em literatura contemporânea e que, inclusive, teve um primeiro contato com Bernardo Carvalho, por meio da obra em questão, publicada em 2002.
Mesmo não sendo uma etnografia histórica, como Mariza Corrêa (1987; 2003) e Eunice Durham (2006) já elaboraram sobre a formação de antropologia brasileira, o livro traz valiosas informações acerca do referido campo profissional, que merecem a nossa atenção. Ao retratar a obstinada tentativa de um investigador em “reconstituir” os últimos momentos de vida do estudioso Buell Quain, entre os índios Krahô, no final da década de 30, Carvalho faz uma breve e interessante apresentação de alguns atores sociais importantes da antropologia, os quais, dentre outras contribuições, foram fundamentais no processo de institucionalização desta carreira acadêmica, em nosso país. Nele, temos contanto com a grande dana do Museu Nacional, Heloisa Alberto Torres, a qual orientou vários estudantes brasileiros e estrangeiros; Luiz de Castro Faria, integrante da primeira geração de antropólogos brasileiros e um verdadeiro formador de linhagem; Edson Carneiro, escritor da celebre obra Religiões Negras, uma das principais referências para quem quer se debruçar sobre as questões relacionadas às religiosidades de matriz africanas; Ruth Landes, antropóloga americana e escritora de uma das mais belas e sofisticadas monografias sobre o cotidiano do Pelourinho, bairro soteropolitano, a Cidade das Mulheres.
O caráter documental, desenvolvido a partir da apresentação verídica destes pesquisadores e de outros nomes de peso das ciências sociais – como Claude Lévi-Strauss e Ruth Benedict –, é o aspecto mais marcante do escrito, ainda que seja conectado a histórias de personagens e a eventos ficcionais criados pelo autor. Em outras palavras, primorosamente, Bernardo Carvalho articula, imbrica e entrecruza encontros históricos de atores sociais verídicos com personagens, situações e eventos ficcionais, abusando de sua liberdade poética. Por essa razão, considero Nove Noites um romance sobre a antropologia e não um texto etnográfico acerca da história da antropologia. Logicamente, tal discussão demandaria, sobretudo, uma problematização mais aprofundada a respeito de como entendemos e definimos os termos: romance e etnografia – uma análise que, por sua complexidade, não cabe aqui. Contudo, farei uma breve apreciação sobre este ponto para analisar o livro proposto.
Segundo o dicionário on-line, romance pode ser definido como uma: "Literatura. Narrativa em prosa, mais ou menos longa, na qual se relatam fatos imaginários (embora estruturados com verossimilhança), às vezes inspirados em histórias reais, cujo centro de interesse pode estar no relato de aventuras, no estudo de costumes ou tipos psicológicos, na crítica social etc.[*]".
O que me parece, a partir dessa consideração, é que a própria definição de romance, uma das narrativas utilizadas pelo literato em seu ofício, seja incompatível com a etnografia, instrumento pelo qual o antropólogo apresenta o seu estudo. No âmbito da antropologia, há vários entendimentos e concepções a respeito das condições necessárias para a elaboração da etnografia. Seja com relação aos critérios definidores, seja sobre o modo como deve ser desenvolvida, ou até mesmo acerca de sua autoria e legitimidade, a etnografia tem fomentado grandes e empolgantes reflexões entre os antropólogos, principalmente nas últimas três décadas. Sem desconsiderar esses debates, provisoriamente, vou defini-la como uma narrativa descritiva, não-ficcional, atenta aos aspectos socioculturais de um determinado agrupamento, ou de um evento social. Tal descrição se diferencia da utilizada, por exemplo, pelo jornalista, justamente, por ser, nos termos de Clifford Geertz (1978, p.15), uma descrição densa, um relato pelo qual se compreende os sentidos e as concepções atribuídas pelas agências às suas práticas sociais. Deste modo, para que a narrativa seja legitimada como uma etnografia, o narrador não somente deverá ser o mais objetivo possível em seu relato, o que implica a não emissão de juízos de valor, como também compreender as “teias de significado” a partir, é claro, das teorias antropológicas.
Além de ser norteado por discussões teóricas, o escrito antropológico está intimamente relacionado à prática do trabalho de campo, uma das principais metodologias adotadas no fazer desta disciplina, como nos alerta Peirano:"Chama-se a atenção para o fato de que amaneira como se faz etnografia/pesquisa de campo está intimamente ligada á forma como se escreve, ou melhor, se constrói etnografias como textos. Assim, estão intimamente relacionados na construção etnográfica a pesquisa de campo (incluindo, naturalmente, a escolha do objeto), a construção do texto e o papel desempenhado pelo leitor. (1992, p.134)".
Em síntese, uma boa etnografia, dentre outros pontos, demanda:
1) Um conhecimento aprofundado das discussões teóricas;
2) A adoção de uma perspectiva mais relativista ao tratar a alteridade cultural;
3) Um conhecimento aprofundado do objeto de pesquisa, o qual, em grande parte, advém da experiência e das percepções apreendidas no campo;
4) Um controle da subjetividade, o que, segundo o jargão antropológico, significa problematizar “olhar do antropólogo”. Dito de outro modo, é muito comum e até recomendável que o antropólogo apresente a motivação que o levou a estudar o tema proposto; a maneira como se inseriu no grupo ou no evento estudado; as dificuldades enfrentadas no campo; as condições nas quais a pesquisa ocorreu; as limitações de seu estudo; e que indique como se comportou diante de possíveis estranhamentos, conflitos e vínculos pessoais estabelecidos ao longo da observação participante.
Nove noites, portanto, é um romance sobre a antropologia e não um escrito etnográfico, porque não há por parte do autor um comprometimento com tais orientações de ordens teóricas e metodológicas. Apesar disso, no livro, em alguns momentos, verifica-se a apresentação de fatos verídicos, cuja descrição se a assemelha às empregadas nas narrativas etnográficas. Verifico essa similaridade, principalmente, quando o autor descreve as características físicas dos antropólogos e as relações estabelecidas por eles em determinadas situações, como no trecho a seguir:
Heloisa Alberto Torres era uma senhora ativa e poderosa. Era gorda e muito pálida, com os cabelos tingidos de azul, segundo descrição de Alfred Métraux, antropólogo franco-suíço especialista em América Latina e com algumas passagens pelo Brasil. Devia ter sido uma mulher interessante na juventude. Vinha de uma família da alta burguesia fluminense. Sempre conviveu com o poder. Como diretora do Museu Nacional, soube manter sua influência e assegurar o seu cargo durante todo o Estado Novo. Era a principal responsável pelos quarto jovens antropólogos americanos que àquela altura trabalhavam no Brasil, graças a um acordo entre a Universidade Columbia e o Museu Nacional – além do próprio Quain, estavam no país os seus colegas Charles Wagley e Ruth Landes e William Lipkind, com quem originalmente ele deveria ter seguido na expedição karajá (Carvalho, 2002, p. 19).
Por tudo que foi relatado, o livro deve ser lido como uma narrativa ficcional, com fatos e personagens verídicos, os quais se referem a um momento histórico relevante da antropologia brasileira, mais precisamente a desenvolvida no Rio de Janeiro. Os pesquisadores tão bem descritos ao longo desta obra, direta ou indiretamente, contribuíram para a criação do núcleo de estudo de antropologia no Museu Nacional. Atualmente, vinculado à UFRJ, o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS) é seguramente uma das instituições educacionais mais importantes da América Latina, justamente por ter formado centenas de mestres e doutores brasileiros e estrangeiros, especialista em várias áreas, como: estudos indígenas, etnicidade, religião, teoria social e estudos urbanos. Seus professores e alunos mantêm intercâmbio com inúmeros institutos dos EUA e da Europa, fato que viabilizou a vinda de vários nomes da antropologia mundial e, consequentemente, contribuiu para a internacionalização do programa. Por anos, o Museu Nacional tem recebido a maior nota (sete), no sistema de avaliação de programas de pós-graduação da Capes, se colocando no cenário acadêmico como um centro de pesquisa em nível de excelência.
Na contemporaneidade, em nosso país, segundo a Associação Brasileira de Antropologia (ABA)[†], além do PPGAS, existem mais de 40 programas de pós-graduação em antropologia – ou em áreas afins – e mais de 20 revistas científicas, destinadas à publicação de artigos acadêmicos a respeito de temas discutidos em antropologia, como: estudo de gênero, pobreza, estudos da religião etc. Estes dados, portanto, atestam a ampliação e consolidação deste campo profissional, cuja notoriedade já é comprovada mundialmente. A antropologia brasileira é considerada uma das mais importantes, não somente por ter vários pólos e núcleos de pesquisa, como também pela diversificação temática e volume de produção.
Bibliografia utilizada:
CARNEIRO, Édison.Religiões Negras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936.
CORRÊA, Mariza. História da Antropologia no Brasil (1930-1960). Campinas, SP: Vértice, Editorados Tribunais, 1987.
______. As reuniões brasileiras de Antropologia: cinquenta anos (1953-2003). Brasília, DF: Associação Brasileira de Antropologia, 2003.
DURHAM, Eunice. R. A relevância da Antropologia. in Homenagens. Associação Brasileira de Antropologia 50 anos. Organizado por C. Eckert & E.P. Godoi, pp. 85-94. Florianópolis: Nova Letra, 2006.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.
LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967 [1947].
PEIRANO, M. Uma antropologia no plural. Brasília, DF: EdUNB, 1992
Bibliografia sugerida a respeito da relação antropologia e literatura:
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998.
[*] Fonte: http://www.dicio.com.br/romance/ (acesso em 24/02/2012)
[†] Para outras informações, ver: http://www.abant.org.br/ (acesso em 24/02/2012)