A alegoria náutica de Lucia Helena
Paulo César Silva de Oliveira
Doutor em Poética. Professor Adjunto da FFP/UERJ e Professor Titular da UNIABEU
Para os que observam o mar, a constância das ondas e o movimento aparentemente repetido denotam risco, como o do navegador que, ao ler erroneamente os sinais náuticos (ou que ouve o canto das sereias) conduz sua embarcação às rochas. Como toda viagem, que implica perigo e aventura, a jornada das letras é não menos perigosa, a exemplo do que já disse Guimarães Rosa, citado por Lucia Helena, acerca da maior de todas as viagens, a vida: viver é um “negócio muito perigoso”. Metáfora náutica e metáfora de vida conjugam-se, pois, à própria construção do filósofo como um sujeito exposto ao perigo. O novo trabalho de Lucia Helena, Náufragos da esperança (2012), equilibra-se na difícil tarefa de olhar sem repetir ou, mais apropriadamente, olhar para desencobrir a palavra soterrada pelo que Martin Heidegger chamara de entulho autoritário, ou ainda, na alegoria benjaminiana, olhar para expor (-se) a uma ideia que surge como um relâmpago, em momento de perigo. Vida, perigo, repetição, ideologia, preconceito são aspectos do processo metamórfico por que atravessaram os séculos, estruturando certos caminhos da literatura que confluem no pensamento crítico de Helena, que busca a compreensão desse percurso histórico, sem jamais perder-se do aqui e agora, promovendo “produtivas formas de ser e conviver com a coletividade e a intimidade” (HELENA, 2012, p. 15). Helena retira esse saber do contato profundo com um conjunto de obras ficcionais, com o saber da poesia, com a crítica literária comprometida e com o pensamento filosófico, radical e trágico. Essa constelação guia seu barco, leme manejado de forma a levar o leitor a uma instigante jornada do pensamento, banhada por muitas outras águas, mas especialmente por águas literárias.
Capitaneado por autores tão singulares e aparentemente diferentes entre si, além de distantes no tempo e no espaço (Daniel Defoe, J. M. Coetzee, Michel Laub, Philip Roth, Thomas Bernhard e Michel Tournier, para ficarmos com alguns navegantes), Helena alia sua verve crítica a uma empresa de leitura que, flertando, por vezes, com certo impressionismo, jamais deixa de lado a abordagem crítica, cerrada no melhor sentido da palavra: leva o rigor da leitura acadêmica para o campo do ensaio, sem perder de vista seu leitor, cuja empatia com o livro se dá justamente por conta de uma prosa escorreita, lúcida, que – erudita – esconde o lavor do trabalho no objeto que elabora.
Náufragos da esperança é um livro de muitas teses, mas Helena as incorpora em conceitos-chave, como a “semântica do naufrágio” (HELENA, 2012, p. 22), com que define certo modus vivendi cujo percurso se inicia a partir do exame do Robinsoe Crusoé, de Defoe, e se concentra, mais especificamente, na produção ficcional dos últimos trinta anos, com os já citados autores-navegadores: “é um livro que trabalha de forma tensa o paradigma cultural construído por determinado conjunto de textos dos últimos trinta anos que integram uma série literária, seus saltos, contradições e paradoxos” (HELENA, 2012, p. 18).
Daí a alegoria náutica como o instrumental teórico que perpassa o conjunto de reflexões do livro. Por força desse pertencimento alegórico, outros conceitos vão se disseminando, em sua reflexão: “utopia do precário” (HELENA, 2012, p. 85); “fronteiras contamináveis” (HELENA, 2012, p. 67); “romance de deformação” (HELENA, 2012, p. 81); passagens; “a estirpe dos náufragos da esperança” (HELENA, 2012, p. 86), dentre vários outros, são conceitos, mais do que expressões que poderiam figurar ao lado da semântica do naufrágio, dando título, forma e cor a seu livro, sem prejuízo do resultado final. É que, ao elaborar uma teoria acerca da literatura contemporânea, seu olhar, a exemplo da leitura benjaminiana do anjo de Klee, está voltado ao passado, mas com os pés rumando ao futuro.
Daí nasce a força do livro, estruturado em três capítulos, rigorosos e quase simétricos, mas sempre tendo em vista essa circularidade e recorrência, que faz da história e do pensamento um movimento sinuoso e imprevisto, inexplicável, por certo, mas que deve necessariamente ser pensado. Assim, cada parte do livro é intercomunicável, a dialogar em processo suplementar. Toda a viagem é esforço e a viagem intelectual implica abandono, perdição, mas também encontro, reconhecimento, mapeamento: maldição do lugar, terror da viagem e desejo de retorno. Como bem sintetiza Maria da Glória Bordini (apud HELENA, 2012, p. 148), o livro de Helena é ponto-chave de um projeto “em que a aventura da viagem, tema inaugural, de certo modo, da épica e do romance burguês, é focalizada não pelo aspecto heroico, mas pelo fracasso do naufrágio”.
No primeiro capítulo, “Estilhaços do naufrágio” (HELENA, 2012, p. 21-54), uma obra literária (Robson Crusoé, de Daniel Defoe) determina o percurso da viagem, cujas paragens se dão no cais de Jean-Jacques Rousseau, especialmente, para mostrar que o sujeito isolado em uma ilha, se apresenta na modernidade como “um eloquente juiz da utilidade das coisas” (HELENA, 2012, p. 31), “a abrir as portas do individualismo na vertente que dele conhece a economia do capitalismo” (HELENA, 2012, p. 34), conforme a leitura de Ian Watt, da qual Helena bem se apropria e a expande. Decorre do movimento crítico a leitura de A marca humana, de Phillip Roth, cuja atualidade – se passa no final do século XX – se configura justamente no embate com a ideia de individualismo, já não tão atual, mas, digamos, ainda intensamente presente (e em crise). São os sintomas e efeitos dessa crise que Helena persegue em sua leitura do romance: Coleman Silk, cujo nome de família já traduz as ambiguidades de que o personagem é feito, conforme Helena, contempla e é contemplado por um mundo em que o olhar já não mais conforma, ao contrário, deforma. Sua marca é a da contradição que não se resolve na pura dialética síntese/antítese: ela se dá na disseminação, no suplemento que jamais suplementa e na desconstrução impossível porque infinita.
Filho de negros, irmão de negros, porém branco na aparência, Silk é tomado como branco e judeu, e daí esconde seu passado – sua marca – até que, ironicamente, é acusado de racismo, o que lhe custa o emprego, o prestígio e a esposa, que falece em decorrência do escândalo. Mas Silk não é o herói da queda, um sujeito degradado em um mundo degradado contra o qual se bate. Ao contrário, personifica contradições suficientes para que o compreendamos sempre por meio de um olhar comprometido (HELENA, 2012, p. 46), que “não admite como definitivo e ‘incontornável’ o mundo da sensação empírica e do racionalismo, em aparência, claro, mas na realidade confuso e ambíguo” (HELENA, 2012, p. 47). Essa leitura de Roth prepara terreno para o escritor-fetiche de Helena, John Maxwell Coetzee. O capítulo dois do livro, “Por mares nunca dantes navegados” (HELENA, 2012, p. 55-97), é a ele quase todo dedicado.
Nesse momento, a ideia de passagem, oriunda do contato com a obra de Walter Benjamin, movimenta o circuito teórico de Helena (2012, p. 63), abrindo horizontes em que “se suplementa o radicalismo da ruptura, permitindo um contágio entre o antes e o depois, entre o velho e o novo, numa convivência tensa, mas bastante mais rica do que se alimentássemos um dos termos da oposição”. Se a leitura de Benjamin é importante no sentido de se estabelecer modos e práticas do hibridismo, Helena (2012, p. 67) a suplementa com a ideia de “fronteiras contamináveis”, a qual atravessa para adiante aportar na ficção de J. M. Coetzee. No corpus ficcional de Coetzee, a “matriz cética” do autor é bem re (explorada) por Helena, especialmente nas análises dos romances Diário de um ano ruim e Elizabeth Costello.
Do primeiro, Helena aponta o desmonte das fronteiras, da crença romântica no individualismo, na acepção de uma autonomização do processo artístico culminando, dentre outras questões, na formação híbrida – cartas, ensaios, relatos etc. – da prosa de Coetzee, que nos remete “à estirpe dos náufragos da esperança” (HELENA, 2012, p. 86), termo que dá título ao livro de Helena. Na constelação do Diário, cabe ainda espaço para mais uma estrela cadente, a representação mimética, passagem de Coetzee destacada por Helena e que vale a pena ser reproduzida aqui: “Acreditamos que houve um tempo em que podíamos dizer quem éramos. Agora, somos apenas atores recitando nossos papéis. O fundo caiu.” (COETZEE, apud HELENA, 2012, p. 88).
Já do segundo romance, Elizabeth Costello, Helena reitera a forma híbrida, encontrada também em A vida dos animais e que, conectada a Diário de um ano ruim, leva o leitor a refletir acerca do papel da literatura – outrora/ontem vista como representação – e da forma como hoje é reavaliada. Daí que a opção pelo realismo reverbera em Coetzee não mais sob a lógica da representação, “mas em sintonia com o paradoxo”, indicando “um diálogo com as formas do trágico e a possibilidade & impossibilidade da representação” (HELENA, 2012, p. 89). É bom afirmar que esse realismo revisto, pontualmente afirmado por Helena, recobre boa parte da ficção de alguns escritores contemporâneos, díspares em suas propostas poéticas, mas reunidos nesse lugar difuso que é o do realismo sem a lógica realista. No Brasil, falaríamos de Michel Laub, Bernardo Carvalho e Milton Hatoum, para ficarmos em apenas três nomes do momento. O diálogo com o trágico imprime um modo de entrada na ficção atual e junto com a alegoria náutica evoca não somente as possibilidades da representação, mas configura também o próprio movimento da economia textual hodierna a dialogar com os dilemas de uma globalização ambígua, para se dizer o mínimo.
Fecha o conjunto de reflexões de Helena o capítulo terceiro, “Naufrágio: metáfora da existência” (HELENA, 2012, p. 98-138). Nessa seção, Helena esmiúça, por meio, principalmente da análise de O náufrago, de Thomas Bernhard, “o sentimento do fracasso da linguagem e do fracasso da própria existência” (HELENA, 2012, p. 100). A natureza dos dois fracassos remete ao pensamento trágico que Helena defende como um norteador do conjunto de obras por ela analisados e é sintomático de nossa época de assombros. Esse momento do discurso de Helena articula tanto a necessidade de se problematizar questões urgentes de uma política de globalização em consonância com a análise filosófica de um tempo sem tempo, isto é, de um tempo da decadência e da ruína, quanto a percepção do movimento crítico capaz de compreender e questionar as transformações oriundas da própria história da literatura. Ou seja, o pensamento crítico que coloca o mundo e suas contradições em discurso não demite o literário e seu percurso, mas os entende como integrante de um processo amplo, multifacetado, norteador e problemático. Assim, Helena nos ensina que a análise intrínseca dos textos não necessariamente demite o pensamento crítico, ao contrário, entende a literatura conforme os três elementos-força apontados por Barthes: mathesis, mimesis e semiosis.
Helena lê os signos literários e mostra o quanto os saberes reunidos pelo texto literário (mathesis) fazem da representação (em crise, reafirmemos, conforme Helena) e da semiosis, reafirmemos, três forças da literatura. Por isso, a crítica de Helena à leitura de Kevin Bazzana acerca d’ O náufrago bem pode resumir sua postura de leitora e de pesquisadora-intelectual: “(...) o livro [O náufrago] não é um documento, mas um romance que converte os fatos em ficção, dando-lhes na linguagem literária, uma dimensão de transcendência que eles não alcançam na ordem dos eventos” (HELENA, 2012, p. 107).
Finalizando essa resumida apresentação, compreendemos que a reflexão de Helena extrapola a metáfora do naufrágio, ou melhor, ela a irradia para a própria condição humana contemporânea, sem esquecer ou demitir o olhar que se reapropria do passado para compreender a natureza discursiva de nossas construções de mundo. O discurso é uma construção que também se nutre de ideologias de grupo, de nação, de classes, e alimenta ainda o preconceito, criando ou recriando formas de controle e interpretação do mundo. Mas é pela análise crítica, por outro lado, que os discursos podem ser postos em circulação para que sejam desconstruídos e denunciados em seus postulados repressores, inserindo a contradição que os coloca em xeque.
Uma crítica que se perceba nesse entrecruzamento, e que não seja apenas diletante ou descompromissada em relação aos fenômenos sociais, políticos e culturais é anunciada por Helena como um modo de responder à eterna e paradoxal questão: literatura para quê? Seja na reavaliação do papel de José de Alencar na construção de um imaginário tropical acerca de identidade, destino, nação ou na apropriação devida do Crusoé de Defoe e do Foe de Coetzee como emblemas de um capitalismo difuso e de veio autoritário, a escrita de Helena jamais demite a possibilidade do crítico de se colocar em discurso. Crítica do discurso, pelo discurso se posiciona, mostrando que a literatura, se é que há uma função para ela, é linha de força que, dentre outras, cumpre um determinado papel. E embora não mais se acredite ingenuamente em um lugar privilegiado para o trabalho da literatura, por meio dele podemos conjugar certos saberes, além de colocar os signos que procuram representar o mundo em rotação, mesmo conscientes das (im) possibilidades da representação.
Helena empreende esse esforço concentrador de energia intelectual, leitura pessoal, discussão crítica cerrada e posicionamento político, termos que, se não traduzem com precisão todo o esforço reflexivo de Náufragos da esperança, ao menos darão ao leitor interessado, um motivo a mais para se arriscar nessa viagem por mares turbulentos, viagem absolutamente arriscada, perigosa, mas fundamental aos aventureiros-navegantes das letras.